Inglaterra,
1715.
Em
uma noite fria e chuvosa, ele caminha por uma centena de cadáveres. Seus longos
cabelos negros encharcados, suas roupas ensanguentadas, sua espada, pronta para
ser usada ainda outra vez. Exausto, ele chega aos portões do próprio castelo,
antes uma fortaleza segura, agora, um lugar tomado por fanáticos.
— Aberração! Demônio! — O grito vem
acompanhado de um golpe de machado na altura do peito. O homem que o ataca é
maior e mais robusto, barba e cabelos ruivos, seu golpe com força o suficiente
para partir seu tronco em dois.
A
lâmina faz um corte profundo no peito do jovem que, desviando da morte certa, encrava
a espada na garganta do seu agressor. Depois, chuta o corpo sem vida para fora
do portão de entrada.
—
Saia...da minha…casa. — Ele fala com dificuldade, caminhando por um castelo
banhado em chamas e sangue. Seu castelo.
Após o
que parece uma eternidade, ele a encontra: seu
motivo para matar, seu motivo para existir.
—
Marie — Lágrimas de sangue brotam dos seus olhos azuis, a espada caindo das
mãos. Ele vai ao encontro da mulher que ama, deitada na cama, com um ferimento letal
na altura do ventre.
Os
belos cachos loiros conferem beleza a uma cena fúnebre, os olhos verdes cheios de
medo, um sorriso triste de quem se agarra com dificuldade a esse mundo. No
quarto do casal, os cadáveres daqueles que falharam em matar a esposa do
demônio, a esposa do vampiro.
— ...
você chegou, estava cansada de esperar. — Ela fala com dificuldade, olhando
para o homem que ama.
Encharcado,
ferido e com medo, ele ajoelha-se ao lado da amada. Segurando delicadamente em
suas mãos, acaricia os cabelos da única mulher que já amou, forçando um sorriso
carregado de tristeza.
—
Peço seu perdão, não quis fazê-la esperar. — Em um momento ele faz surgirem
presas afiadas, presas que rasgam o pulso de um homem desesperado. — Mas apesar
de tudo, cheguei a tempo.
Ele
estende seu pulso ensanguentado para a jovem moribunda, um raio de esperança
surgindo em seus olhos.
— Beba,
beba e continue comigo. — Ele aproxima o corpo dela de si. — Ainda posso
transformá-la, fique comigo pela eternidade.
Ela
sente dor, cospe sangue. Então segura o rosto dele com ambas as mãos e, com um
sorriso, responde:
— Sou
eu quem vai pedir perdão, pois não posso aceitar seu presente. — Ela o beija
suavemente nos lábios. — Eu vivi como mortal, e é dessa forma que desejo
morrer.
Ele
chora amargamente, pois sabe que aquela mulher teimosa não voltará atrás.
—
...você é cruel me dizendo isso. — Ele diz, desviando o olhar.
—
Continue por esse mundo meu amor, até... até nos encontrarmos novamente em outra
vida. — Abraço forte, os dois querendo tornar esse breve momento final em
eterno. — Um dia chamarei por você, Adam, verei seu sorriso, e ai então...
A chuva
cai forte do lado de fora do castelo, dentro dele, os olhos de Marie Winnicott
se fecham para sempre.
— Se
você irá partir, eu partirei com você. — Ele diz, deitando-se ao lado dela.
— Dormirei
pelas próximas décadas, séculos, milênios... Até o fim do mundo se preciso for!
Dormirei com você, meu amor, até que esse pesadelo acabe, até ouvi-la me chamar
de novo.
— Seja
nesse mundo ou no outro. — Ele diz, e fecha os olhos.
[...]
Inglaterra,
2015.
Hora de acordar, Adam; diz a voz que ecoa
em sua mente.
Seus
olhos se abrem, pela primeira vez em três séculos ele emerge de seu sono
atormentado, das lembranças amargas de um tempo que não pode voltar. Com olhos
feitos para a noite, logo passa a enxergar os detalhes da tumba em que tem
dormido, receptáculo esculpido em pedra para abrigar um corpo sem vida. Seu
corpo.
Um
movimento dos braços e a pedra é movida, o túmulo aberto revelando um mundo
intocado pelo tempo. Com paredes de pedra, colunas altas e arquitetura dignas
de alguém como ele. Em roupas de um nobre inglês do século XVIII ele se ergue; longos
cabelos brancos escondendo um corpo enfraquecido pelo tempo.
Eu despertei, Marie, você está aqui?, ele
se pergunta.
A
sede intensa é como uma lâmina na garganta, agonia que só faz lembrá-lo do que
ele é: um monstro que se alimenta de sangue. Um amaldiçoado. Um vampiro. Abrindo passagem por uma
porta secreta, feita para abrir apenas por dentro, ele caminha novamente pelo
seu castelo.
Conforme
se arrasta pelos corredores escuros, apoiando-se em paredes cheias de teias de
aranha e mofo, começa a ouvir cada vez mais próximo o som de música eletrônica,
algo que soa estranho e barulhento aos seus ouvidos. Seria apenas continuar em
frente e logo chegaria a fonte do barulho, mas algo o instiga a pegar outro
caminho.
Posso sentir você, Marie.
Cada
passo subindo a longa escadaria é difícil, mas pouco a pouco o farrapo humano
que restou dele começa a discernir os sons à sua frente.
— Tô
cansado de você fazendo doce! — voz de homem. — Tá na hora de abrir essas
pernas, santinha do pau oco.
Risos.
—
O... o que você... botou na minha cerveja? — Uma voz doce e de alguma forma
familiar, falando com dificuldade, parecendo embriagada. — Você me drogou, Barry!?
Algo
na voz da garota enche de força seu corpo fraco. Movendo-se rápido como um
gato, ele avança em direção à voz, como um predador em seu próprio território.
O cômodo de cima é largo, possuindo cinco portas: duas em cada lateral, e uma
quinta no fim do corredor. Portas velhas, de madeira apodrecida.
No
centro de tudo, dois rapazes, um deles com uma garota no colo, o outro com uma
lanterna e bebida.
Ambos
são ruivos, e bem semelhantes um ao outro, aparentando ter entre dezoito e
vinte anos. O menor vai à frente: com cabelo cacheado bem cheio, olhos
castanhos e sardas. De calça jeans, tênis e blusa social aberta, carrega uma
garrafa de cerveja em uma mão e uma lanterna na outra.
— Na
tua cervejinha? Nada de mais! — Ele zomba, rindo e bebendo. — Tu não gosta de
ser tratada igual princesa? Então, só te dei um boa noite Cinderela.
Logo
atrás, um jovem de boné, sardas e corpo de quem faz musculação, carrega a jovem
nos braços tatuados. Ele está com blusa sem manga, bermudão e tênis, relógio e
cordões brilhando na escuridão, além de uma expressão de nervosismo na face.
Refém
da dupla, uma bela garota aparentando estar na mesma faixa etária, é carregada.
Com cabelos loiros na altura dos ombros, e olhos azuis, parece confusa, ela faz
cara de nojo ao ouvir que foi dopada, e então vomita.
— Merda, garota! — Grita seu carregador.
— Sem avacalhar com o bagulho.
O
dono da lanterna apenas ri, enquanto chuta repetidamente a porta no centro do
corredor, que se abre no processo, dando para um quarto abandonado.
—
Esse vai ser nosso motelzinho. Não é
de classe, mas já quebra um galho. Tem até cama de casal!
O maior
entra no cômodo, deixando para trás o jovem de lanterna e cerveja nas mãos.
Para o caçador, a oportunidade que esperava.
O
vampiro avança como um animal faminto. O garoto ilumina o chão à frente por
puro reflexo, e grita horrorizado ao contemplar a face do monstro! Derrubando lanterna
e garrafa, e caindo de costas no chão de pedra, ele se esforça para sacar a arma
rapidamente. Quando olha para o rosto do vampiro, vê apenas morte. Em seguida,
som de grito e tiros.
A
arma dispara repetidamente, dos seis tiros, dois atingem o alvo que, mesmo
enfraquecido pelo tempo e a fome, resiste ao poder das balas. Os projéteis
transpassam seu corpo, mas isso não o para. No rosto sardento do garoto,
surpresa e medo que não causam compaixão. “Ele
merece”, o vampiro pensa, enquanto encrava os dentes no pescoço da vítima,
e a sede não o deixa pensar em mais nada.
O
sangue quente e delicioso torna o morto-vivo mais forte, mais humano, atento e
consciente o suficiente para abandonar sua vítima com um resto de vida, antes
que o outro garoto volte. Seus cabelos retornam à cor preta natural, seus olhos
retomam o brilho, sua pele retorna a um tom saudável.
A
jovem tapa os ouvidos para escapar do barulho dos tiros, sua mente confusa,
seus olhos teimando em se fechar. Após colocar a garota em cima de uma cama
enorme, velha e mofada, o ruivo mais alto avança em direção ao corredor.
— Que merda é essa!? — Ele grita, após
encontrar o irmão caído aos pés de um desconhecido. Está escuro de mais para
que enxergue o sangue que jorra do pescoço do rapaz, o mesmo sangue que escorre
da boca do homem à sua frente.
— Ah
mano, agora você tá muito fu... — Ele perde a fala quando nota um vulto se
movendo em sua direção.
Jeremy
tem noções de Boxe, além de bons reflexos, graças a isso atinge um murro com
toda sua força na face do vampiro! Adam apenas o encara, seu olhar de desprezo
quebrando o espírito do adversário. Em um piscar de olhos o vampiro agarra sua
cabeça e bate violentamente contra a parede de pedra. O jovem leva as mãos à
nuca ensanguentada, o monstro então o agarra pela perna e lança com força
sobrenatural para dentro do quarto já aberto.
Tudo
se resume a um borrão para o rapaz que é jogado como um brinquedo de um lado
para o outro. O sangue escorrendo farto pela cabeça, a perna torcida, todo o
corpo doendo pelo impacto sucessivo contra o piso. Sente então uma dor
alucinante na mão esquerda, quando nota um pé esmagando seus dedos.
Ele
rilha os dentes e chora de raiva e dor, então Adam o levanta pelo pescoço com
uma só mão e, com força sobre-humana, começa a enforcá-lo.
— Para violadores, a morte. — Suas primeiras
palavras, uma sentença.
Ele observa
a vida se esvaindo de um homem que se debate inutilmente, presas a mostra,
olhos frios.
—
Quem...quem é você? — A voz vem de cima de uma cama que ele conhece bem.
Deitada nela, alguém estranhamente familiar, sua voz hesitante e curiosa, apaga
a chama do ódio.
Ele
larga o garoto, que cai no chão, tossindo sem parar. Então contempla a dona da
voz: o cabelo está mais curto, as roupas são estranhas, mas ele ainda assim
sabe de quem se trata. Por um momento uma alegria intensa invade seu coração
morto, e um sorriso de felicidade genuína se faz presente em seus lábios.
— Sou
eu...Adam. — Ele diz, para uma Marie no mínimo diferente. — Você me chamou, eu
estou de volta.
A
jovem ri incontrolavelmente, então leva a mão a boca, para deter a vontade de
vomitar. Depois, olhando fascinada para o belo jovem de longos cabelos e olhos
profundos, responde:
— Eu
sou Claire, desculpa, mas te conheço não. — Ela volta a rir, ele fica desconcertado.
— Mas...bem que eu podia conhecer. Você é gato, hein.
Ela
está visivelmente alterada, e depois de dizer isso, apaga.
Adam observa
a jovem cair no sono, como uma criança inocente, como um anjo. Então decide que
vai deixá-los viver. O vampiro abaixa na direção do jovem que busca
desesperadamente por ar. Olhos nos olhos, uma ordem que um humano como esse não
pode ignorar:
— Você sairá do meu castelo levando seu
companheiro com você. Vocês não viram nada de estranho, apenas levaram uma
surra de um desconhecido, sairão sem dizer nada a ninguém, e nunca mais
tentarão encostar nela novamente.
Olhar
vazio, compreensão da ordem, obediência.
— Vou
dar o fora com meu mano, e ficar longe dela. — ele repete, mecanicamente.
Adam
vai até o jovem de quem bebeu o sangue, morde o pulso e derrama um pouco do
próprio sangue sobre a marca da mordida. Ela lentamente regenera, até não sobrar
sequer uma cicatriz. O ruivo alto vai em direção ao companheiro e o carrega
para fora.
O
vampiro observa o quarto empoeirado e cheirando a mofo, mas ainda assim, o
quarto em que se deitou ao lado do cadáver da esposa, fechando os olhos e
abraçando o nada. Agora ela está novamente ao seu lado, numa outra vida,
sabe-se lá quanto tempo depois.
[...]
Horas
depois.
Claire
sente uma forte dor de cabeça e abre os olhos assustada. Está deitada em uma
cama velha e fedida, a única iluminação vinda de um castiçal de velas acesso ao
seu lado. Sua mente está muito confusa, imagens desconexas e partes de
conversas estranhas, algo sobre Barry e Jeremy a levando para algum lugar
escuro. E claro, um estranho, um estranho atraente e sombrio.
A garota se levanta, enxuga os olhos e tenta
se recuperar do que classifica como uma
ressaca épica.
—
Você acordou, enfim. — Diz o dono do castelo, sem qualquer vestígio de sangue.
— Estava preocupado.
A
garota olha para o jovem de cerca de vinte anos, na porta do quarto. Com roupas
de época, longos cabelos negros e belos olhos azuis, ele é uma figura
impressionante. Ela sabe que deveria estar assustada, desconfiada até. Mas
estranhamente, sente-se segura.
— ...
a ...a quem eu devo agradecer? — ela pergunta com cara de sono, e um sorriso
inocente, quase que por reflexo.
O sorriso é igual, ele pensa, o sorriso
da Marie.
—
Adam Tepes, senhor desse castelo. — Ele diz, “e seu esposo”, gostaria de
completar.
Ela
sorri mais ainda com a resposta.
—
Claire Winnicott, universitária e, de alguma forma sentindo dever algo à você. —
Apertam as mãos. — Isso é uma fantasia?
Ele
para um momento para refletir sobre o que viu no salão do seu antigo castelo: jovens,
dezenas deles, dançando ao som desse barulho
dos infernos. Suas roupas são muito estranhas, e as garotas, muito
indecentes para o padrão inglês. Bebida e suor se misturam ao barulho, as luzes
e a dança, fazendo a cabeça e os olhos de Adam doerem.
—
Sim, é uma fantasia. — Ele diz, enquanto observa o rosto da jovem Winnicott,
pelo visto, descendente da família de sua esposa.
Adam
sorri, começando a se sentir novamente vivo, mesmo sem entender em que tipo de
mundo sua maldição fê-lo renascer. Claire sorri, dando-se conta que o famoso castelo fantasma da região realmente tem
um dono. Depois pensa sobre algo, e pergunta, com medo:
— Escuta...
não rolou nada entre a gente não, né?
—
Você estava mal, eu te deixei descansar aqui. — Ele responde. — Garanto que
nada além disso.
Ela
suspira, aliviada. Depois passeia pelo quarto antiquado...algo ali lhe trazendo
uma sensação familiar que sequer compreende. Ela vai até a sacada, de onde tem
uma boa visão noturna da cidade. Adam à segue, bebendo da visão que a beleza
dela lhe proporciona.
— Você
é novo na cidade pelo jeito, né? — Ele faz que sim. — Vamos fazer o seguinte,
Adam: serei sua guia particular por Bleak Hill, é o mínimo que posso fazer para
agradecer. Topa? — Uma mão estendida e uma palavra desconhecida.
—
Você é minha guia, será um prazer. — E ele ergue uma mão incerta que ela aperta
prontamente.
Sorrisos
trocados, olhos nos olhos, e um número de celular que ela anota em um pedaço de
pano de mesa, enquanto diz:
—
Bom, já que você está sem seu celular, e diz que não se importa... — Ela guarda
a caneta na pequena bolsa que carrega, depois o encara, e ambos sorriem. — Até
outro dia, Adam.
— Até
breve... — Ele hesita por um momento, ao perceber que a chamaria “Marie”. — ...até
breve, Claire.
Ele a
vê indo embora, um momento doloroso. Parte dele gostaria de forçá-la a ficar,
mas o vampiro sabe que nada valioso como o amor se consegue a força. Ela se
vira então para um último olhar na direção daquele sujeito enigmático e
estranhamente interessante, e sorri.
Depois
que ela parte, o vampiro sobe até o ponto mais alto da construção, com o vento
frio soprando em seus cabelos e suas velhas roupas numa noite de lua cheia.
Do
alto de uma fortaleza erguida no cume de um monte sombrio, vendo luzes muito
brilhantes vindas da cidade de Bleak Hill, no norte da Inglaterra, Adam Tepes,
viúvo da mulher que amava, vampiro, após trezentos anos de sono, por mais
estranho que pareça... sente-se em casa.
[...]
Na
cidade de Manchester, na varanda de um quarto de hotel, uma mulher de belas
curvas em um vestido decotado olha para o horizonte. Seus cabelos castanhos
balançam ao vento, suas mãos banhadas no sangue do cadáver de um homem caído ao
seu lado. Seus olhos abertos em espanto.
—
Algo grande despertou essa noite. — sorriso malicioso no rosto — Espere por
mim, queridinho, estou indo até você.
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