Hospital
Central de Bleak Hill.
Claire
Winnicott se encontra ao lado de uma paciente em estado terminal. A mulher,
visivelmente abatida pela doença, aparenta ter bem mais que seus trinta e cinco
anos, e seu ânimo definha ainda mais rápido que a saúde.
— Essa
é a verdade, é sim. — Diz ela, mão frágil segurando na mão da jovem estagiária.
— Enquanto eu era útil pra ele, era bonita e caia na sua conversa, ele “me
amava”. Agora, depois de passar seis anos esperando e confiando nele, fazendo
tudo por ele...
A voz
é interrompida pelo choro, a jovem segurando com as duas mãos a delicada mão da
paciente, seu olhar demonstrando empatia e atenção para uma mulher solitária.
— Estou
morrendo, Claire, eu sei. E o homem que amo mais do que tudo, nem mesmo vem me
dizer adeus.
Claire
olha nos olhos dela, sentindo a intensidade da dor que carrega, se esforçando
para reter uma lágrima que busca saída.
Não há muito que eu possa dizer. — pensa
ela. — Ou talvez seja minha inexperiência, no fim das contas. Bem, tem horas em
que tudo o que uma psicóloga pode fazer é estar aberta para acolher a dor da
outra pessoa.
Minutos
depois, a jovem está na cozinha do hospital, bebendo chá quente ao som do
noticiário local, devidamente ignorado por ela, perdida nos próprios pensamentos.
Ela está morrendo, completamente abandonada
pelo homem que ama. Ela sabe que foi usada, sabe que tudo o que ele lhe dizia
eram mentiras, que ela nunca seria a única na vida dele. E ainda assim...
Uma
lágrima molha seu rosto, que logo é enxugada pela garota. Ela respira fundo e
bebe do chá, tentando aquecer o corpo, e o coração.
Ainda assim ela queria vê-lo, queria
estar com ele, acima de tudo. — Um sorriso triste se segue. — Uma boba, assim
como eu sou.
— Ei,
ei loirinha! — grita, uma voz feminina. — Estava te procurando por todo canto!
Claire
olha assustada para a faxineira do hospital, uma mulher de meia-idade, acima do
peso e sorridente.
—
...sim?
— Teu
namorado tá no hospital. — ela diz. — Ouvi que o coitado tá todo mordido e
arranhado, vai lá vê!
— O
quê!? — Dessa vez é a Claire que grita, enquanto se ergue por impulso, deixando
cair no chão a xícara e o líquido que não é mais capaz de aquecê-la.
[...]
Adam
e Jeanne estão no setor de emergência. Uma médica e uma enfermeira prestam os
primeiros socorros, enquanto a polícia aguarda do lado de fora da porta. A
médica é uma mulher de quarenta e oito anos, nascida em York, negra, cabelos
curtos e bonita para a idade. A enfermeira é uma jovem de vinte e um anos,
bastante magra e de cabelo louro escuro. A enfermeira parece um pouco tensa ao
se ver diante do famoso Adam Tepes, enquanto que a médica olha para os dois de
forma desconfiada. A quantidade de sangue nas roupas e corpo, além dos trapos
que eles vestem sugerem ferimentos muito mais graves do que os que ela e a
enfermeira observam.
— Vocês
dois foram atacados por cães. É isso? — Pergunta a médica, enquanto a
enfermeira ajuda o casal a tirar as partes das roupas em pior estado ou que
cobrem os principais ferimentos.
— Na
verdade foram lobos, querida. Uma alcateia de lobos grandes e raivosos. — Fala
Jeanne, sorriso zombeteiro enquanto rasga a parte da calça em que foi mordida.
— Isso depois do carro ter capotado, claro.
Adam
apenas suspira, e as profissionais seguem seu trabalho. Eles são então separados
por uma cortina, por conta da necessidade de se despirem. Minutos depois, o
casal se encontra sentado, um em cada leito. As roupas foram trocadas por
uniformes de hospital, os ferimentos foram limpos e a enfermeira que cuida do
Adam agora encara algo que julga estranho.
—
Se... seu braço. — Gagueja uma enfermeira de olhos arregalados. — Eu jurava que
o corte estava bem pior, quando limpei, faz cinco minutos.
—
Impressão sua. — O vampiro diz, enquanto afasta o braço que lentamente se regenera.
A
jovem se afasta bastante nervosa, enquanto procura por algo em uma das
estantes. Mesmo faminto, e quase sem sangue no corpo, a carne morta do monstro
busca superar os ferimentos causados pelos lobos. O processo é lento, porém
perceptível, e ele sabe disso. Nesse momento, a cortina ao lado é aberta por
uma vampira deitada em um leito. Jeanne apenas sussurra, em um tom que ele
possa ouvir.
— A
minha também parece bem desconfiada, acho bom você cuidar disso, Tepezinho.
Meus métodos são mais sangrentos e menos sutis.
Quando
a enfermeira retorna, dá de cara com o vampiro. Com um olhar penetrante e
sorriso sedutor, ele segura nas mãos dela, enquanto fala suavemente:
— Samantha, eu e minha parceira estamos
bem. Você é uma excelente profissional, poderá ser uma grande médica se quiser.
É só enfaixar as partes machucadas que podemos ser liberados. — A garota parece
totalmente perdida nos olhos dele, incapaz de discordar, totalmente cativada.
—
...mas você parecia tão ferido, tem certeza que não precisa de mais nada,
senhor Adam? — Ela pergunta, jogando o cabelo para trás com uma mão.
Adam olha
para a vampira do outro lado da cortina parcialmente aberta, então sorri e
responde:
— Sangue. Precisamos de muito sangue para
ficarmos realmente bem.
[...]
A
policial Emma Watson está parada ao lado da porta que leva a enfermaria, mão
sobre o cabo da arma e postura atenta, bem ciente do risco que o casal pode
representar, caso sejam realmente vampiros.
Eles são
vampiros, eu sinto isso. — Pensa ela. — A mesma intuição que tive sobre o
Jimmy, de que havia algo de muito errado sobre ele, e eu estava certa.
A
ruiva leva a mão até o celular, busca o número do namorado na memória.
Se alguém pode me dizer se eles são ou
não o que parecem, é ele, mas não sei se vale a pena colocar o cachorrão pra
correr riscos. Ai, Jimmy, essa cidade é tão pequena, quando foi que ficou
infestada de gente esquisita?
—
Emma? — A policial estava tão perdida em seus pensamentos que não notou a
aproximação da jovem de voz já familiar.
Claire... era só o que me faltava.
—
Senhorita Watson, como um dos grandes e fortes braços da Lei pode te ajudar? —
Ela pergunta, já ciente do motivo da garota estar lá.
— Ouvi
que o Adam foi levado a enfermaria, Emma. Como profissional de psicologia, e
sabendo que ele acabou de passar por algo grave, preciso vê-lo. — Claire busca
disfarçar a preocupação na voz, enquanto toca no crachá na altura do peito para
enfatizar sua função.
Como profissional? Sei. — Pensa a
policial.
—
Olha Claire, desculpa, mas isso não vai rolar. Você deve esperar a médica
terminar o trabalho dela. — A ruiva diz, firmemente, enquanto analisa a
estagiária que bate o pé nervosamente no chão.
A
loira morde o lábio, nervosa, aperta forte os próprios braços enquanto encara a
policial, com olhos brilhantes.
—
Emma, por favor... — ela pede, abrindo mão da compostura. — Eu preciso mesmo
vê-lo.
A
ruiva olha para cima e sorri, desfazendo a fachada séria diante da garota de
quem foi babá por tantos anos.
—
...tá bom, não resisto quando você faz essa carinha de menina chorona. — Ela
responde, apertando as bochechas de uma Claire envergonhada.
Emma
abre caminho e Claire se vê diante da porta que levará ao primeiro homem que já
amou na vida, e o único que pôde machucá-la como ninguém mais poderia. Ela se
lembra da noite do restaurante, da decepção, da raiva e da dor. Mas também se
lembra do primeiro beijo, do cordão e do que viu nos olhos dele. Por fim, se
lembra da paciente com quem conversou nessa noite.
Estou tão doente quanto você, minha pobre
amiga. Escrava de um sentimento que destruirá meu coração. — pensa ela.
E
então abre a porta.
[...]
Roger
caminha pelo porão da casa de Paul. Seus olhos estudando o local, seu olfato discernindo
o cheiro de mofo e bebida, e o tato sentindo a poeira onipresente. Estantes de
livros: História, Psicologia, Teologia, Antropologia, Filosofia, Ciência da
Religião... Naqueles que abre, encontra anotações e páginas marcadas. Em um
quadro branco preso na parede, fotos de diversos indivíduos que foram vítimas
do Golem. Algumas são recortes de jornais, outras foram tiradas em
circunstâncias típicas de alguém que está à espreita de um alvo.
Será esse o homem por trás da máscara? Estou
mesmo no covil do monstro? — O ex-investigador de polícia se pergunta.
Encontre Paul Davis. Essa
foi a mensagem que recebeu do Golem, após a noite em que o vigilante invadiu
sua casa atrás de informações sobre Jeanne Hillton. Roger é do tempo antigo, para
descobrir o mínimo que fosse sobre alguém, teria que suar a camisa. Mas os
tempos mudaram. Graças à internet, em cinco minutos encontrou o perfil público
de seu anfitrião nas redes sociais, além do seu currículo no site da
universidade.
Paul Davis: vinte
nove anos, leciona na Universidade de York, com mestrado em Psicologia e doutorado
em História, mora na cidade de Bleak Hill. Poucas fotos públicas, além de
grupos de debates diversos e um punhado de informações irrelevantes. Uma
investigação um pouco mais aprofundada, revelou que sua esposa desapareceu há
pouco mais de dois anos atrás, sem deixar rastros. O homem não tem passagem
pela polícia, e seus vizinhos também não disseram nada sobre ele de importante,
para além de “quase não vejo a cara”.
O som
de passos descendo a escada, fazem Roger observar parado ao estranho homem que
se expôs para ele. O professor segura uma bandeja com xícaras de chá e
torradas.
—
Espero que esteja bom, não estou habituado a receber visitas. — diz Paul, entre
risos.
Quando
o homem bateu a sua porta, Paul não disse muito, além de pedir para que ele
esperasse lá embaixo e que ficasse à vontade. Nenhuma pergunta, nenhuma
resposta. Deixou o homem livre para olhar o que quisesse durante os vinte
minutos que levou para descer com o lanche.
Sinal de que não tem nada aquii embaixo
que ele não queira que eu saiba. — conclui o homem.
—
Imagino que esteja cheio de perguntas, Roger Foster. — Fala Paul, enquanto puxa
uma cadeira ao lado da mesa cheia de pilhas de anotações e vê Roger fazer o
mesmo.
— É
da minha natureza, sou um investigador. A gente se aposenta, mas os instintos
não. — Responde o homem, comendo da torrada. — Uma em especial está martelando
na minha cabeça nesse momento: Você é o
Golem?
Paul
sorri com a pergunta, então bebe o chá, e só então responde:
—
Não, eu não sou o Golem. Mas isso realmente importa?
Roger
o estuda atentamente, logo conclui que ou o professor diz a verdade, ou é
alguém muito bom em disfarçar a própria linguagem corporal.
—
Não, não “realmente”. — Ele responde, ainda sério. — A pergunta que realmente
importa é: o que é Jeanne Hillton.
Paul
olha na direção do quadro.
— Ela
é como eles, uma assassina. — Som de torrada sendo partida. — Todos ali são bem
diferentes, mas sem exceção: assassinos.
—
Então é isso que o Golem é? Um assassino que faz papel de “justiceiro”, indo
atrás de outros assassinos para pôr um fim em seus crimes? Parece coisa de
quadrinhos, concorda?
— O
Golem é mais que um mero “justiceiro”. O tipo de alvo dele, é bem mais complexo
e raro que sociopatas serial killers. — Paul pega o celular, começando a buscar
alguma coisa nele. — Seus alvos são como ela, nossa amiguinha em comum, Jeanne
Hillton. Não envelhecem, misteriosos, assassinos... monstros. Como posso dizer: ele está mais para um caçador de
monstros, meu caro Roger.
— Não
há monstros, professor. Não no sentido literal da palavra, imagino que um homem
da ciência como o senhor saiba disso. — Roger encara o professor, pela primeira
vez esboçando um sorriso. — Fora dos filmes e livros de terror, só existem os
bons e velhos homens fazendo esse papel. E que sabem fazer muito bem, diga-se
de passagem. Não sei qual a explicação para a mulher que investiguei, e nem
para as ações do Golem, mas seguramente há uma explicação lógica e cientificamente
plausível para eles.
—
Será mesmo? — questiona. — Talvez a verdade seja um pouco mais cinzenta que
esses tons de claro e escuro, investigador.
Paul abre
então uma série de arquivos diante do Roger, com fotos e cópias de arquivos
sobre vítimas de vampiros e eles próprios. Enquanto o homem passa os olhos por
aquele mar de informações, e escolhe alguns dos casos mais interessantes para
ler, Paul mostra um vídeo no celular. Nele, se vê um vampiro sem os pés e mãos (decepados
e largados pelo cômodo), se arrastando pelo chão. Ele aparenta ter entre vinte
e sete e trinta anos, seu rosto está banhado em lágrimas vermelhas e ele começa
a urrar de dor quando os primeiros raios de sol queimam sua pele. O espetáculo
todo dura cerca de cinco minutos, indo das súplicas da criatura buscando uma
fuga, até só restarem suas cinzas.
Roger
assiste a tudo, sem emitir palavra.
— Um
material bem interessante, esse. Mas não o suficiente para me fazer acreditar
em Bicho Papão.
Paul
guarda o aparelho e diz:
— Não
peço para que acredite nesse vídeo ou nessas fotos, investigador. Só peço para
que abra sua mente. Há monstros de verdade entre nós, e o trabalho do Golem é
acabar com eles. Quanto a acreditar...sei que acreditará, quando estivermos
diante dela. Então todas as suas perguntas terão respostas.
[...]
De
volta ao hospital.
Quando
a jovem Winnicott entra na enfermaria, encontra Adam com as roupas de hospital,
com o tronco, um braço e uma perna enfaixados. O jovem está sentado no leito,
com a médica terminando de enfaixar seu braço. O coração dela acelera, a
intensidade do que sente por ele se traduzindo em lágrimas que banham sua face.
Ele
encontra seus olhos e estende uma mão que ela ignora, avançando para um abraço
apertado e carregado de significado. A médica (já devidamente convencida a
cooperar e acreditar) apena sorri, logo saindo para trás das cortinas que levam
à outros leitos, em sua maioria vazios.
— Adam... Adam. O que fizeram com você? —
Pergunta ela, enquanto envolve o pescoço do jovem com os braços, e molha seu
pescoço com suas lágrimas.
Sinto tanto sua falta, tanto! — Ela
queria poder colocar em palavras, mas mesmo sem fazê-lo, ele pode sentir.
Ele a
envolve nos braços, também com força. Sentindo seu cheiro, seu calor, ele logo
se dá conta da enorme falta que ela lhe faz.
— ...
só uma fatalidade. Eu estou bem, ficarei bem. — diz ele, enquanto se entrega ao
momento.
Se é esse o prêmio pelo ataque dos lobos,
que venham mil deles a cada noite!
Os
dois se deixam ficar nesse abraço, as lágrimas dela ainda descendo, molhando
seu peito enfaixado. Ela ergue então o rosto, lentamente na direção do dele. Os
olhos de ambos se encontram, refletindo um amor capaz de resistir e superar
qualquer obstáculo: seja na vida, seja na morte. Com a mão livre ele acaricia o
rosto dela, movimentos suaves e cheios de afeto, que a fazem fechar os olhos e
se sentir novamente em paz. Novamente amada. Completa.
Um
beijo suave na testa, então nos olhos, nariz...até chegar aos lábios já cheios
de ansiedade e desejo. Eles então se beijam, ignorando à tudo e a todos. Seja o
local, as circunstâncias, as feridas e os medos. Um beijo desesperado, como se
há qualquer momento, sentissem poder perder essa felicidade tão tênue. O tempo
deixa de fazer sentido. Como fora há trezentos anos atrás, como na época em que
eram um. Unidos por uma aliança de fidelidade. Uma época sem mentiras, quando
Marie conhecia o monstro bebedor de sangue, e o amava para além disso.
Ele
enxuga as lágrimas do rosto da amada, enquanto ela segura seu rosto e sente seu
cheiro. Não há necessidade de palavras entre eles, pois o amor que os une é
algo visível e palpável naquele lugar.
— É
assim que você devia ter me beijado, Tepezinho. — Fala Jeanne, saindo de trás
das cortinas ao lado. Com roupas trocadas e partes engessadas, além de um
sorriso debochado na face. — Um beijo digno de cinema.
Claire
entra em choque, atônita diante da chegada da vampira. Ela permanece
aconchegada ao vampiro, cujo ódio é sentido em uma onda capaz de arrepiar a sua
igual.
—
Parece que estamos sempre nos esbarrando, Claire. — Ela diz isso,
aproximando-se do casal, e colocando uma mão sobre o ombro dele. — Talvez seja
por nós duas gostarmos do mesmo homem.
Claire
então se afasta, confusa e envergonhada.
Ela estava com ele, como naquela noite. —
Ela olha para os olhos do homem que ama, com um olhar suplicante. — Adam, diga
alguma coisa. Qualquer coisa!
Ela
busca desesperadamente por uma resposta, por algo que a impeça de ir embora e
sofrer como sabe que irá. Uma esperança, uma mentira, qualquer coisa. Ele pensa
em muitas coisas que poderia dizer, mas então ele lembra: dos lobos, da Ordem
do Dragão e do seu pai. E não diz nada.
Na noite da festa, no restaurante a até
mesmo hoje. Talvez não seja só sexo, no fim das contas. — ela conclui.
Ela
então desvia o olhar, atormentada pelo silêncio agonizante e pelo sorriso
sádico da vampira.
— Isso...isso foi um erro. Um grande erro. —
Ela caminha em direção a porta de onde veio, para e encara o homem que ama, e
único capaz de deixá-la destroçada dessa forma. — Um erro que nunca mais se repetirá.
Quando
ela sai, deixa o casal de vampiros sozinhos, num mar de silêncio e tensão.
— Não
fique tão chateado, ela logo ia ficar sabendo que a gente estava junto. — A
vampira diz, passando a mão pelo seu rosto e com um beijo em seus lábios. —
Cidade pequena, lembra?
O
sorriso da vampira logo desaparece do rosto, substituído por um esgar de dor, e
sangue escorrendo da boca, na sequência. Quando ela se dá conta do que
aconteceu, percebe a mão do vampiro encravada em seu ventre, destruindo órgãos
e ossos em uma invasão brutal. Ela ergue os olhos com dificuldade, dando de
cara com o olhar de um predador frio e letal sobre si.
—
Você se esquece de quem eu sou. Do que eu sou. — A mão penetrando a carne, uma
dor insuportável que enche os olhos da vampira de medo e lágrimas. Os dedos
dele lentamente, chegando até o centro, apertando seu coração morto. — Não
esquecerá mais.
—
Testemunhas... polícia... Claire... — Jeanne usa toda a força de vontade que
tem para se manter consciente e astuta o suficiente para lembrá-lo das
consequências, ciente que esperar por compaixão não a salvará do fim.
Eles se olham, e ele então arranca a mão do
peito dela, deixando a vampira à beira do fim. Ela cai de rosto no chão,
totalmente sem forças e agonizante. Capaz apenas de vê-lo olhando-a de cima e
cuspindo palavras cheias de desprezo:
—
Após essa noite, você jamais pisará nessa cidade novamente. — Ele então abaixa
na altura dos olhos dela, ainda caída. — Isso, se quiser manter o coração ainda
dentro do peito.
Ele
segura então a face dela com a mão, e olhos nos olhos, resolve coloca-la sob
sua vontade.
— E
apenas para garantir isso...
[...]
Paul
está sozinho no porão, com o celular em uma mão e vinho na outra. Pensando sobre
o que ocorreu nessa noite, sobre a parceria que começa a se formar com Roger.
“O Golem é um caçador de monstros”, ele
disse.
Como
se até hoje Paul tivesse matado um vampiro que fosse! O vídeo, as fotos, os
arquivos...quase tudo material que saqueou das suas vítimas, os “caçadores de monstros”
de verdade. Mas como confessar para alguém o que o Golem realmente é?
—
Você se sente só, Paul, por isso busca a ajuda desse homem. — diz Pietra
Ferdinari, para seu algoz. — Eu teria sido sua amiga, juntos, eu teria te
ensinado um caminho melhor.
No
manual de psiquiatria Paul encontrou muitas formas de nomear aquilo que o
atormenta, e nenhuma delas envolve as palavras “espíritos” ou “fantasmas”. Mas
quando se descobre que vampiros são reais, todas as certeza se tornam
relativas. O professor tenta ignorar as palavras sussurradas por sua última
vítima, concentrando-se apenas na face da mulher que admira na foto do celular.
Uma jovem de vinte e seis anos, pele branca, olhos e cabelos negros, mechas na
altura dos ombros e exibindo um sorriso formal. Óculos de grau, colar com a
estrela de Davi e brincos dourados.
— ...
Kellen. — ele sussurra.
Em
seguida, olha para a aliança dourada em seu dedo, refletindo sobre o porquê a
mantêm após esses dois anos, após a morte dela. Sim, pois para a família a
jovem Kellen Davis está desaparecida, mas Paul sabe a verdade: ela está morta.
Levanta-se novamente a cada noite, mas ainda assim, morta. Uma lembrança
ressurge em sua mente, a mesma lembrança que o atormenta há dois anos, quase
todos os dias.
É uma
noite fria, quando Paul se vê diante de uma jovem caminhando por uma rua escura
e abandonada, de vestido e olhos negros. Seus traços parecem sutilmente mais
belos após a morte, e também mais tenebrosos. A frente dela, de joelhos e
sangrando pelo pescoço, o próprio Paul. Colocando a mão sobre o ferimento da
mordida ele tenta inutilmente estancar o sangue. Dos seus olhos escorrem lágrimas,
as mãos trêmulas revelando o medo que ele tenta esconder.
— Não
me procure mais, Paul. — diz ela, tom triste na voz — Isso só te trará mais
dor.
— ...
Kellen, por favor! Nós ainda podemos... — Diz ele, enquanto tenta se pôr de pé,
buscando os olhos da vampira que foi sua esposa até poucos meses atrás.
Em um
piscar de olhos ela aparece ao seu lado, o impacto de um soco dela a um
centímetro do seu rosto, estremecendo todo o lugar. Suas presas a mostra, seus
olhos fazendo o homem se sentir como um ratinho diante de um gato adulto e
experiente. O professor perde a voz.
— Não
existe mais “nós”, Paul. Kellen Davis
morreu! — Ela olha firme, e então o levanta pelo pescoço com uma só mão,
observando seus olhos demonstrarem medo, e dizendo:
— A
mulher que você amou, a mulher que te amou, ela está morta. O que eu me tornei
é mais forte que qualquer homem, mais rápido...e mais terrível também!
A
respiração dele fica cada vez mais difícil, seus pés balançando acima do chão,
as lágrimas embaçando a visão. O homem tenta não ouvir as palavras que penetram
cortando fundo em seu peito, qualquer tentativa de diálogo impedida pela forte
mão que esmaga seu pescoço.
— Eu
bebo sangue, Paul, meu corpo só sobrevive assim. Esqueça seus sonhos de ter
filhos, esqueça a praia, os parques e o amor. — Os olhos dela ficam vermelhos,
sangue escorre deles enquanto o professor Davis começa a perder a consciência.
— ...
a mulher que casou com você, morreu. — voz embargada, lágrimas de sangue — Venha
atrás de mim novamente, Paul, e eu te prometo que você morrerá também. Só que diferente
de mim, não vai levantar de novo.
Falta
de ar absoluta seguida de escuridão. Escuridão da qual Paul nunca mais saiu.
Escuridão que deu luz ao Golem. Paul retorna do passado com olhos molhados,
fitando o retrato na tela do aparelho.
— Eu
matei por você, meu amor, com minhas próprias mãos. Eu me tornei o Golem por
você, para proteger você! O Golem é aquilo que se levantou depois daquela
noite. É o nosso filho, nossa cria das trevas.
— Ela
é uma aberração, Paul. — diz a madre. — Você não pode protege-la, você deve
destruí-la. Destruir todos eles.
Ele
bebe o último gole do vinho que Adam deixou em sua casa na noite em que se
conheceram, já embriagado.
— Não
posso matá-la, Pietra. Isso eu nunca serei capaz de fazer. — Ele deixa a
garrafa cair ao chão, se partindo em pedaços. — Mas Jeanne Hillton, e todos os
outros, esses sim eu posso matar.
— É
hora de um recomeço para o Golem! — Ela fala, enquanto tenta ignorar os muitos
olhos que o observam nas sombras. — Quando nos encontrarmos novamente, meu
amor, será você quem tremerá de medo.
[...]
Hospital
Central de Bleak Hill.
Uma
limousine para diante da porta do hospital, de dentro dela sai Lincoln, que
calmamente vai na direção de seu mestre.
— Vim
o mais breve que pude, senhor. — Fala o velho homem, com ar preocupado e gestos
impecáveis.
Na
porta, o xerife Corlson está estupefato! Quase não pôde acreditar nas palavras
que ouviu saírem da boca da mulher chamada Jeanne Hillton, quando a mesma recebeu
a intimação para depor sobre a ida ao restaurante na noite em que a madre
morreu: “Eu matei a madre, ela sabia demais” e ”Eu venho ameaçando Adam Tepes
de morte, para que fique calado”.
Adam
usou toda sua capacidade para manipular a mente da vampira moribunda. Ele sabe
que o efeito não durará muito tempo, mas ao menos isso vai ajudar a mantê-la
longe da cidade, se não quiser ficar realmente atrás das grades, o que é um
grande problema para alguém que só desperta após o anoitecer. Emma olha para
tudo desconfiada, ciente que o comportamento das profissionais do hospital foi
de alguma forma manipulado. Também não entende o que levaria aquela mulher
sinistra à simplesmente confessar um crime hediondo, e tudo isso só faz com que
aumentem suas suspeitas sobre Adam Tepes.
— Não
saia da cidade, senhor Tepes. — diz o xerife. — E compareça para prestar o depoimento,
se não quiser mais problemas com a Lei.
Adam
para diante da porta aberta por seu fiel servidor, fingindo necessitar da ajuda
de uma muleta.
— Não
tenho nada a esconder, xerife.
Minutos
depois, já no carro, ele liga para alguém em especial.
—
Creio que gostará dessa notícia. — Adam diz, sério. — Fiz Jeanne confessar o
assassinato da madre. A polícia está com ela, agora.
Do
outro lado da linha, Paul Davis sorri para uma certa madre morta.
—
Você é mesmo um bom companheiro, Conde. Me lembre de te levar um bebê
rechonchudo de presente, para o jantar.
Paul
desliga.
—
Parece que o Golem vai fazer uma visita a essa prisão.
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