No
estacionamento do restaurante recém inaugurado, o xerife Carlson está pensativo.
De uniforme e estrela dourada, se escora na viatura policial enquanto fuma
calmamente um charuto. Com a luz de um
poste reluzindo em sua cabeça calva, usa as grossas costeletas e bigode para servir
de distração para os dedos da outra mão. A policial Emma está aguardando dentro
do carro, enquanto sorri ao ver as chamadas não atendidas do celular (todas do noivo).
Uma jovem de vinte e cinco anos, baixa estatura, cabelos ruivos em rabo de
cavalo e olhos castanho-claro, com curvas meio escondidas pelo uniforme de
trabalho.
O
homem entra na viatura ainda desatento, seu peso afundando o banco, e o charuto
empesteando o ar. O olhar de censura de sua parceira de trabalho o faz se
livrar do fumo, um tanto contrariado.
— Você é chata mesmo, hein, garota! — ele
resmunga.
— “Chata”
seria a quimioterapia pra tratar o câncer que esse seu charuto pode me dar. —
diz ela, enquanto sorri ironicamente.
A
policial liga o carro enquanto observa os papéis nas mãos do xerife: formulários,
relatórios e dados, e o homem com o mesmo ar pensativo.
—
Quem diria que o Conde Drácula estaria envolvido na morte da freira, hein? — Ela
diz, pegando a estrada. — Os repórteres vão ficar doidos quando souberem!
—
Ninguém vai saber de merda nenhuma! — Grita ele, enquanto desabotoa a parte de
cima da camisa estufada. — Por hora, ele é só um dos suspeitos, e temos outros
dois.
— A
acompanhante do Tepes e o tal sujeito que sentou na mesma mesa da freira,
certo?
O
xerife está puxando a costeleta, olhar perdido.
— Principalmente
o sujeito. Ele saiu junto da madre por aquela porta, logo depois do Adam Tepes
ter saído com a mulher de vestido. Ele é o principal suspeito, no mínimo, uma
excelente testemunha.
— Se
o bendito lugar tivesse uma câmera, facilitaria o trabalho pra identificar. — suspira
Emma.
— Ao
menos o garçom aceitou fazer um retrato falado. Logo, logo, a gente descobre a
cara do indivíduo. — Fala o xerife, enquanto vê o charuto que leva por reflexo
a boca ser “tecado” para fora do carro.
— ...mas
você é mesmo chata, hein!
— O
senhor já disse isso xerife, não seja repetitivo. — fala Emma, sorriso debochado
no rosto.
[...]
Paul
desperta em um quarto escuro, sentindo não ter dormido nada. Três noites se
passaram desde que tirou a vida da madre, três noites terríveis de pesadelos e
visões que afastam o sono. Diante do espelho do banheiro, contempla as olheiras
recém adquiridas, de repente lembrando-se dos olhos da mulher que matou. Água
no rosto e um longo banho para limpar o suor, mas não a culpa.
Enquanto
toma um chá com torradas, tenta não dar importância ao fato que deveria ter
lecionado hoje. Muito mais atraente é a leitura do grosso livro que o vampiro
Adam lhe entregou, com um tema bastante peculiar:
— “Ordo Dracul”, a “Ordem do Dragão”. O famoso grupo de cavaleiros cristãos do qual as
histórias dizem ter saído Vlad II, chamado Dracul:
dragão em romeno. Pai de Vlad III, o Drácula: filho do dragão. Quem diria, pai de Adam Tepes.
Ele
se força a comer e beber, mesmo sem vontade.
—
Preciso saber como se fala “neto”, em
romeno. Adam Tepes: o neto do dragão.
— Ele ri, folheando o livro e falando sozinho. — Não soa lá muito imponente.
O
professor se lembra de como Adam ficou surpreso ao saber que a freira tinha nas
costas a tatuagem de um dragão enroscado em uma cruz prateada.
—
Esse é o símbolo da Ordem. — Adam disse — Não posso crer que continuem na ativa
após trezentos anos!
— É, continuam.
— diz o professor para si mesmo — E eu acabo de matar um deles.
A única utilidade da falta de sono foi o tempo
para ler. Nesse momento, está terminando o grosso livro, compilações de cartas
e fragmentos de textos que fazem menção as ações da Ordem, desde os tempos
anteriores a Vlad II, até suas incursões para exterminar seu filho, já como o
lendário e temido Drácula.
— É
um pecado esconder isso do mundo. — diz ele para si mesmo, enquanto bebe o chá
— Mas já que divulgar seria suicídio, e se matar é um pecado maior, dos males o
menor.
Ainda
sonolento ele segue para o porão da casa, porta sempre trancada e com chave bem
escondida; uma prevenção necessária. Lá embaixo, checa os e-mails do seu
contato na polícia de Manchester. Primeiro parabenizando o trabalho bem feito
do Golem com a serial Killer (ele sente um enjoo ao ler isso), depois com as
informações que ele pediu sobre o nome Jeanne
Hilton.
As
manchetes de jornal falam de uma policial de trinta anos, muito semelhante a
mulher que conheceu, desaparecida em Manchester, em 1994. As investigações
sobre o desaparecimento não deram em nada, mas curiosamente foram retomadas em
1996 e posteriormente em 2004, sempre sem sucesso. No fim, o nome do
investigador que esteve à frente do caso.
—
Parece que o Golem precisa fazer uma visitinha. — diz ele, enquanto põe os pés
sobre a mesa do seu escritório particular e tenta cochilar um pouco.
[...]
Cidade
de Manchester, 2h00.
Após
ouvir alguns sons vindos da janela da sala, Roger Foster, cinquenta e dois anos
e policial aposentado, deixa a esposa dormindo sozinha e resolve investigar a
origem deles. O homem tem altura mediana, cabelos semi-grisalhos e barba fina
em um rosto oval, com nariz achatado e olhos pequenos, cortados por grossas
sobrancelhas.
Ainda
exibindo boa forma física, o ex-policial caminha de pijama pelo quarto, pistola
em mãos, se aproxima da cozinha quando então ouve uma música peculiar vinda da
sala. Uma melodia suave, a língua parecendo hebraico. Com seus velhos sentidos
de policial, Roger deixa os olhos se acostumarem a escuridão e avança lenta e
furtivamente em direção a sala. Enquanto
entra no cômodo, de repente se dá conta do que a música significa:
O Golem, ele pensa.
Mal
entra na cozinha, o homem é desarmado. Na escuridão ele mal conseguiu discernir
um vulto negro, sente então o braço torcido para trás e o cano gelado de sua
própria arma contra sua cabeça.
— Não
grite. — fala o Golem, com sua voz cavernosa e tom intimidador. — Quero respostas, fale e viva, silencie ou minta, e morra.
Roger
tenta se manter frio diante daquele que a polícia considera um serial killer.
Em meio a sensação de total impotência, teme especialmente pela esposa, que
dorme profundamente no quarto. Seu único consolo é saber que o filho
adolescente não está em casa, e torce para que tudo se resolva antes que ele
chegue.
— ...
eu compreendi, farei o que mandar. — diz.
Minutos
depois, o homem está revirando pilhas de arquivos empoeirados em seu escritório
particular, um pequeno cômodo onde vai quando procura paz ou nostalgia. A única
luz vem de um abajur em cima da mesa, o Golem se mantém sempre atrás, longe do
seu campo de visão, e o ex-policial sabe que assim deve continuar se quiser
viver. Após reunir uma pasta cheia de arquivos, fotos e jornais da época, ele a
coloca sobre a mesa enquanto olha para a parede, dizendo:
—
Isso é tudo que consegui juntar sobre o caso Jeanne Hilton. — um período de
silêncio, tom de frustração — A policial que desapareceu e depois foi vista
envolvida com gente perigosa. Esquiva e fatal, e sempre com a mesma face. Poderia
ter descoberto muito mais, se homens poderosos não interferissem.
— Está tudo aqui?
— Sim,
o trabalho mais desafiador da minha carreira, e o único que não pude terminar.
Longo
silêncio, Roger medita sobre o porquê de virem atrás disso após tantos anos.
Teme a morte, mas ficará feliz se sua esposa for poupada e alguém um dia puder
solucionar o caso que o terá levado a morte. Então percebe a própria arma posta
sobre a mesa à sua frente, assim como a pasta sendo puxada pela figura atrás de
si.
— Não precisa temer, policial, você não
morrerá hoje. — a voz do assassino se distancia — Eu descobrirei a verdade, os culpados serão punidos.
As
palavras são inesperadas, Roger fica confuso com o que ouve. Então se dá conta
de que o invasor não trabalha para aqueles que o tiraram do caso.
Será que os boatos são verdadeiros, o
Golem é um justiceiro?, ele se pergunta.
— Ainda pensa nela, Roger? Ainda deseja
saber quem ou o que é a ex-policial?
Um
certo brilho há muito apagado retorna aos olhos do homem nesse momento. Uma
euforia perceptível na voz que responde:
— ...
mais do que tudo na vida, eu quero.
Paul sorri
por trás da máscara de pedra, seu pressentimento sobre o investigador
aposentado se revelando certeiro.
—
Então aguarde meu contato. — Paul diz, se afastando do homem ainda de costas. —
Se estiver mesmo disposto a arriscar tudo por essa resposta, ela será sua. Mas
tudo tem um preço....esteja disposto a pagá-lo.
Após
cinco minutos, Roger ainda está parado no lugar em que foi deixado, olhando
para a arma e pensando no que aconteceu ali. Depois, volta para o quarto e se
deita ao lado da esposa, um sentimento dentro de si fazendo seu coração bater
mais forte.
Jeanne Hilton... parece que mesmo após tanto
tempo, tem gente interessada em você, pensa ele.
[...]
O
professor se arrasta pelo porão.
Ainda
vestindo a couraça do Golem, após passar toda madrugada e dia seguinte
examinando os documentos que conseguiu com Roger, ele sente que chegou no seu
limite físico e mental. A grossa capa negra parece pesada, sua face de pedra
largada ao pé da mesa parece encará-lo inquisidoramente:
O que você pretende, Paul?, parece
perguntar.
De
repente, um calafrio. A sensação de estar sendo observado. Ele saca
disfarçadamente a arma, virando-se para a direção da presença. Encostado no
canto mais distante do porão, um homem de cerca de 1,85m, pele negra e dreads, vestindo
roupas de couro sujas de sangue. O mesmo sangue que escorre pelo buraco no
peito, resquício de um tiro de escopeta bem acertado.
— Nem
vem apontar essa coisa pra mim. — diz o morto, sorriso intacto — Isso ai não
pode te ajudar não, cara.
O
professor sua frio, e com as mãos trêmulas, coloca a arma sobre a mesa com
dificuldade, evitando olhar para o homem. Quando se dirige ao quadro cheio de
fotos e anotações, se vê diante de uma mulher loira, de altura mediana e corpo
escultural em roupas de ginástica. Seu pescoço exibe um corte de uma ponta a
outra, dele escorrendo sangue em profusão.
— O
que houve, Paulzinho? Não tá mais a fim de mim? — Pergunta, se inclinando
sensualmente na direção dele, o decote generoso sendo banhado em sangue.
— ...vão para o inferno, me deixem em paz!
— Paul grita, jogando a cadeira em direção a mulher.
Ela
gargalha insanamente enquanto é transpassada pelo móvel, então se escora no
quadro e diz:
— Nenhum
homem ou vampiro me rejeitou antes, gatão. — diz ela, zombando — É esse
cortezinho que te incomoda?
Paul avança
com dificuldade em direção da escada, tentando fugir do pesadelo. Porém, logo descobre
um sujeito sentado no terceiro degrau dela, só de calças, careca e com a face
esmagada. O sujeito segura uma garrafa de cerveja que leva ao que restou da
boca, derramando o líquido por toda a escada. Paul fica nervoso, e suando sem
parar leva as mãos à cabeça, abrindo e fechando os olhos, na esperança de todos
sumirem ao abri-los novamente. Enquanto faz isso, começa a sentir mais
presenças se juntando ao seu redor, pouco a pouco mais próximos, a agonia
sufocante, pouco a pouco o reduzindo a um menino assustado e de joelhos.
— O que vocês querem de mim!? — ele grita
em desespero.
Um
longo silêncio seguido de risadas e palavras desconexas. Após um tempo que
pareceu uma eternidade, sons de passos se aproximando dele, e uma voz familiar
sussurra em seu ouvido.
—
Mate a vampira, mate o Tepes. — diz a madre — Faça todos os demônios queimarem!
Ele abre
os olhos, sugando e soltando o ar, se esforçando para recuperar a calma. Aos
poucos as mãos param de tremer, a calma retornando. Ele se ergue: novamente um homem, novamente só.
— Não
me dê ordens, Pietra. — Ele fala, olhando para o espaço vazio onde antes estava
sua última vítima. — Sou eu que decido quem morre ou não. E essa é a hora da Jeanne.
[...]
Estrada
de Bleak Hill, caminho para o castelo Tepes.
A
viatura policial segue em disparada na direção dos tiros. Emma acelerou assim
que escutou o primeiro, e outros se seguiram depois. Sons de uivos se juntaram
a sombria sinfonia, levando um nome aos lábios de uma policial tensa:
— ... Jimmy.
O
xerife ligou as sirenes e preparou as armas, surpreso com a ação inesperada
após a visita ao restaurante. Conforme se aproximam, encontram um carro de
passeio de ponta-a-cabeça e em péssimo estado. Alguns minutos depois, os faróis
da viatura iluminam uma grata surpresa.
— Parece
que não temos mais que procurar o Conde pra entregar a intimação, policial
Watson. — ri o xerife.
Emma
sorri aliviada, feliz por não encontrarem com nenhum lobisomem assassino no
meio do matagal.
—
Economia de tempo e gasolina. — responde ela.
Diante
da dupla de policiais já fora do carro, um casal de vampiros cobertos de sangue
e com roupas em farrapos. E claro, com muito a explicar.
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