Bleak Hill.
Ela
corre pela noite escura, com seu pelo cinzento recobrindo seu corpo meio
humano–meio lupino, escondendo sua forma monstruosa dos olhares da gente comum.
Após correr sem parar até se afastar o suficiente do hospital, Evelyn se deixa
enfim cair sobre a grama fria. A sensação é agradável, e ela permanece assim,
deitada e de olhos fechados, por algum tempo. As roupas se rasgaram durante a
transformação (assim como o pescoço de uma enfermeira que viu mais do que
devia), mas ela ainda teve tempo de roubar o celular da mulher antes de saltar
do 3° andar do prédio. A fuga cobrou seu preço: a perna que já estava ferida
pelo tiro, piorou após a queda, junto do braço em que se apoiou para não bater de
cabeça no chão.
Eu tô acabada. Os tiras me reconheceram
na mecânica, os médicos também... — Ela pensa, enquanto se senta e olha para o
celular. — Tenho de dar o fora dessa cidade.
Ela
observa ao redor, e não vendo ou sentindo ninguém, se arrasta até uma árvore na
qual se escora, esperando o corpo se recuperar dos estragos.
Só mais um pouquinho... e ai eu posso
seguir a viagem como loba. Ainda posso me juntar ao bando...ao Malcon. Depois é
dar adeus a esse lugarzinho de bosta e minha vida dupla. Dar adeus a
universidade, dar adeus a ... Claire.
Ela
suspira enquanto disca um número no celular, totalmente ignorante quanto aos
olhos que a observam na escuridão.
[...]
Minutos antes, no hospital.
Ignorando
o bom senso que o aconselha a ficar longe dos olhos da polícia, Roger decide ir
até o hospital onde sabe que os donos da mecânica e um dos criminosos está. Há
um policial na porta do edifício, mas o aspecto envelhecido do ex-detetive (graças
a maquiagem) e sua postura corporal, coerente com a idade falsa, facilitam
bastante sua entrada lá sem levantar suspeitas.
“Ninguém
desconfia de um velho sorridente”. É com base nessa crença que o velho de boné,
bengala e roupas largas e grossas põe as mãos nos crachás certos e se infiltra
em alas normalmente inacessíveis para ele. Na área de emergência, ele encontra
a policial que o baleou na ocasião da invasão à delegacia: Emma. Com a perna
engessada e uma muleta escorada ao lado, apresenta uma série de ferimentos superficiais
que não tinha antes, e está sentada ao lado de um leito. Nele, um homem
bastante ferido, cheio de hematomas e pontos. O homem bate com a descrição do
mecânico Jimmy Duncan, e parece estar desacordado. Há outros leitos vazios, uma
enfermeira que acaba de sair do local levando material usado e um policial
robusto, de guarda entre a entrada do cômodo e os leitos.
— ...
e essa é a situação geral. — Explica Roger pelo celular, após enviar por
mensagem a localização dos possíveis complicadores, para além daquilo que
descobriram através da planta do hospital e fotos de lá. — Posso cuidar do
policial de guarda enquanto você faz sua entrada de costume. E ai eles são
todos seus.
—
Faça-o Roger, e me envie o sinal. — diz Paul Davis, do outro lado da linha.
Roger,
que antes estava sentado em um banco, observando do corredor, se aproxima
lentamente do policial, no ritmo de um idoso com dificuldades para caminhar.
Até que tropeça propositalmente, esbarrando na parede ao lado do oficial.
— Se
machucou, senhor? — Pergunta o homem de queixo largo e olhos grandes, já
ajudando Roger a se pôr de pé, enquanto o ex-detetive disfarçadamente injeta
com uma agulha uma substância capaz de deixá-lo inconsciente em poucos
segundos. Roger o coloca sentado no banco onde antes estava, enquanto envia a
mensagem automática que o professor aguardava para agir, e deixa o gravador com
a música hebraica tocando.
Emma
se espanta quando vê tudo ficando escuro. Logo em seguida, a música começa a
preencher o local. Ela olha para o noivo com ar preocupado, enquanto saca sua
arma e faz um círculo fechando o perímetro.
Então,
de alguma forma, saltando pela janela do terceiro andar do hospital, surge um
vulto com uma capa. A policial sua frio, enquanto mantêm a arma apontada em
direção ao vulto, a figura que ela sabe ser daquele que quebrou sua perna e
nocauteou vários policiais apenas para pegar uma vampira encarcerada.
Santa Mãe de Deus, diz que ele não veio
atrás do Jimmy!
— O que você quer aqui!? — Emma se
esforça para manter a firmeza, enquanto tenta se concentrar no inimigo à sua
frente, o qual ela só distingue as formas gerais, localizar algum outro
movimento suspeito de um comparsa, ignorar a respiração mais acelerada do Jimmy
e não surtar pelo fato de nem
conseguir ficar de pé sem a muleta.
O
Golem levanta-se de forma lenta, enquanto sua face de pedra encara o olhar de
uma policial assustada. Seus olhos enxergam perfeitamente na escuridão, vendo
que o mecânico está inconsciente.
— Vim por ele, e por você. — ele diz. — Vim pela verdade.
—
“Verdade”?
— Sei o que ele é, sei o que a matilha é. —
Paul diz, sob a voz do Golem. — Posso
salvar a garota, mas preciso saber...como.
Emma
o encara por algum tempo, relutante. Então abaixa a arma.
[...]
De volta ao tempo presente.
Já em
forma humana, sentindo frio por estar coberta apenas por poucas tiras da roupa
de hospital que não foi completamente rasgada, sentada e escorada numa velha
árvore, Evelyn decide ligar para a amiga, antes de sair de vez de lá.
Antes que ela saiba por outros, se é que
já não soube. Vamos...atende....
— ...
Claire? — ela pergunta, tensa.
—
Evelyn, é você? — A garota se acalma ao perceber que é a voz da amiga do outro
lado. — Que número é esse?
— Deixa
de ser xereta, sua velha fofoqueira — ela sorri com a própria piada, sua voz
transparecendo nervosismo.
— ...tá tudo bem? Você parece nervosa... ou
bêbada. — risos da Claire.
Evelyn
olha para a lua no céu, suspira e responde.
—
Escuta, e escuta bem. Eu andei me metendo numas merdas ai, e você logo vai
acabar sabendo, assim como a cidade toda. — Claire começa uma pergunta, mas é
cortada pela amiga — Olha, eu juro que as coisas não são do jeito que a tv vai
falar, você me conhece miga, sabe que eu não sou uma pessoa ruim... só faço as
coisas muito por impulso, as vezes.
A
garota sente as lágrimas salgadas descendo pelo rosto, até os grossos lábios. O
vento sopra frio, o som de morcegos alçando voo a deixa ainda mais tensa, e ela
se esforça para reprimir um soluço de choro. Nisso a Claire é quem fala:
—
...eu te conheço sim, Evy, você é minha melhor amiga. Pelo amor de Deus, me diz
no que você se meteu, me fala como te ajudar!
Então,
ainda antes de responder, a garota tem um mal pressentimento. Uma sensação ruim
que a deixa completamente arrepiada.
—
Lembra bem disso Claire: somos melhores
amigas. Confia em mim. — Ela se levanta então lentamente, ainda escorada na
árvore. — Vamos embora dessa cidade, Claire, da facul, chutar o balde de vez? O
que acha?
—
C-como é? Você pirou!? — uma Claire assustada pergunta.
—
Claire...tá tudo errado, tudo! O Tepes, o Tom, eles são perigosos, você tem que
ficar longe deles. Eles são perigosos de um jeito que você nem pode sonhar!
Tipo, é tudo muito louco pra eu te explicar por cel, então por favor, me
encontra na saída da cidade que eu te explico tudo. — ela começa então a
enxugar as lágrimas, olhando ao redor e buscando algum cheiro sobrenatural, do
tipo que ela poderia sentir mesmo como humana.
—
Evy, eu sei que você não gosta do Adam, mas...o Tom? Desde quando um menino pode ser perigoso pra mim? Eu quero te
ajudar, miga, mas não me pede pra jogar minha vida pra o alto com um argumento
desses. Olha, eu vou te encontrar e ai, com calma, você me explica como eu
posso te ajudar, eu posso....
Enquanto
ouvia a voz da amiga, daquela que sempre a ajudou desde os tempos de escola,
ela finalmente consegue sentir o cheiro dele. Tomada pelo medo, a garota olha
ao redor, buscando a origem do cheiro de lobisomem. Então ela vê, os olhos
vermelhos... o porte assustador. E sente medo. Muito medo.
— ...
Evy! Você tá me ouvindo!? Me responde, por favor! — A voz da Claire é de quem
já está insistindo há algum tempo, Evelyn não saberia dizer, o tempo parece ter
congelado enquanto ela observava aquela criatura de pelugem alva caminhando
lentamente, sobre quatro patas, em sua direção.
—
Claire... desculpa. Você sabe que eu te amo né? — E a Evelyn solta o celular no
chão. Devido ao nervosismo, nem mesmo conseguiu encerrar a ligação primeiro.
— Evy,
fica comigo, me... — Ninguém pode ouvir as súplicas desesperadas da Claire, mas
ela ouve a conversa que se segue.
Andy
avança calmamente, parando à poucos centímetros do rosto de uma Evelyn que
treme de frio e medo.
— Onde...
encontro... a Mandy? — Ele pergunta, com seu hálito quente.
Evelyn
tenta usar a única arma que ainda possui, justamente aquela que mais a ajudou
na vida: o corpo. Mordendo o lábio de forma sexy, e abraçando o corpo de modo
que, além de se proteger do frio, possa evidenciar os belos seios que possui,
ela se aproxima ainda mais do garoto em forma de lobo, alguém que apesar de
tudo, imagina ela, ainda está na fase de “pensar em sexo acima de qualquer
outra coisa”.
—
Qual é, Valentine? Acha mesmo que o Malcon contaria isso pra gente? Ele ia nos
levar juntos ao lugar, não tinha porque falar antes. — Ela chega mais perto do
monstro, seus seios encostando no corpo dele, seu hálito e suor invadindo as
narinas do garoto. — Olha, eu não sei onde eles tão, mas se você me deixar
ligar, eu garanto que posso desco...
A voz
dela se transforma em um grito de dor, quando as garras fazem espirrar sangue
por toda a grama, enquanto tiras grossas de carne são arrancadas em um único
golpe do lobo branco.
— ... Evy, Evy! Meu Deus.... (choro), o que tá acontecendo ai? —
Claire, ainda ao telefone.
Evelyn
cai de joelhos, olhando para a perna destroçada, as lágrimas de medo e raiva se
acumulando nos olhos.
—
Não, não! Por favor, não me mata, cara! Eu...
—
Onde...acho ... a Mandy? — A voz gutural repete a pergunta, não sem um tom de
raiva.
— Tá,
eu sei, é numa igreja abandonada em outra cidade. Eu... posso te levar lá! Vai
ser bem mais rápido que você sair procurando, você pega sua garota, eu volto
para os meus amigos e nosso bando mete o pé dessa cidade. — Ela tenta manter a
calma e lutar contra a dor, convencer o monstro a deixá-la viver.
Andy
desce com as garras da outra mão, contra a outra coxa da garota. O resultado é
igual, com ela agora caindo de costas no chão, enquanto rilha os dentes de dor.
— Eu
quero...o endereço. Não ando com putas, vou sozinho. — Ele se coloca sobre ela,
com os dentes sobre o pescoço... a saliva escorrendo pelo corpo dela. — Ou me
diz, ou faço você em pedaços.
[...]
Minutos
antes, no hospital.
— Uma igreja? “Padre vampiro”? — pergunta
o Golem.
Segurando
na mão do amor de sua vida com uma mão, e na pistola com a outra, Emma responde
ao sombrio vigilante, como alguns o tem chamado.
— O
Jimmy não está em condições de confirmar, mas ele já me falou muitas vezes
sobre o trabalho que a matilha faz para vampiros. Que foi por causa disso que
ele saiu, anos atrás. Existe um vampiro em Manchester à quem eles chamam de
“padre”, ele usa igrejas abandonadas para matar suas vítimas, fazer seus
rituais de sangue. Assim que meu Jimmy descobriu, pulou fora. Levou um bom
tempo e um bom dinheiro até que o Malcon finalmente deixasse o Jimmy em paz,
mas quando ele atacou a casa hoje de manhã, um deles deixou escapar as palavras
“igreja” e “sacrífico”.
Enquanto
Paul extraia o que precisava da policial, e bloqueava as passagens de quem
poderia interromper a conversa. Roger cuidava de ir até onde se encontravam os
outros envolvidos. Ao contemplar a cena, ele informa o mascarado pelo celular.
—
Golem, más notícias. No quarto em que estava a loba...tem uma enfermeira morta,
uma poça de sangue e uma janela arrombada.
— E o
tal garoto? Havia um garoto entre os resgatados. — O Golem pergunta, num
tom que Emma pode ouvir.
— Ele
é dos nossos! Não faça nada a ele. — Avisa a policial.
— ...
janela aberta, lençóis amarrados de modo a fazer uma corda. E ninguém no
quarto.
— A loba fugiu. Seu amigo também. Preciso me
preocupar com ele, policial? — O Golem pergunta.
— Ele
não será problema pra ninguém, pode ser um aliado, até.
— Não
preciso da ajuda de crianças. — Ele diz, se aproximando da Emma, e apontando
para o Jimmy. — Mantenha essas aberrações
quietas, policial, e o Golem as deixará viver. Se saírem de controle, eu mesmo os mato. E a
você.
— Que
seja. Salve a Mandy Duncan, por favor, é só isso que eu peço. — Arma apontada. —
E você terá uma aliada na polícia de Bleak Hill.
Roger
pergunta sobre o que farão, se devem ir atrás da garota-monstro, ou até a tal
igreja. O Golem sai pela janela por onde entrou, e uma vez em terra, responde
ao seu parceiro de caça.
— Você
é um homem religioso, Roger? — Paul Davis pergunta, com sua voz natural. — Pois
hoje é dia de irmos na igreja.
[...]
— ...
sei, então é lá que eu encontro a Mandy. E a matilha toda. — O lobisomem fala
consigo mesmo, após conseguir o endereço da jovem licantropo.
—
Andy... Andy, cara. Eu sei que você não é um cara mau. Você não tem motivo pra
me matar, cara. Por favor, eu disse como você faz pra achar sua garota. —
Evelyn está com o rosto molhado de lágrimas, as pernas queimam onde foram
dilaceradas e a saliva do monstro escorre pelo seu pescoço. — ...você acha que
ela iria gostar de saber que você matou uma mulher indefesa, nua, chorando e
suplicando pela própria vida?
—
...Evelyn... onde você tá? Por favor...como eu vou te ajudar assim... quem é
Andy!? — A voz da Claire ainda agarrada ao celular, chorando e sem entender o que
acontece. Evelyn não ouve, mas agora se dá conta da tela acessa, e que a
ligação não foi encerrada.
Claire? Não...você tá ouvindo? Droga,
droga.
— Sei
como vocês pensam: “se não é da matilha, não importa”. Só que a Mandy é importante
pra mim, assim como você é importante pra o Malcon. — Andy diz, seus olhos
vermelhos fitando ameaçadoramente os grandes olhos amendoados de uma jovem
bela, atraente e tola.
—
...Andy... por favor...você não precisa fazer isso. — Ela implora, voz
embargada pelo choro.
— Agora
o Malcon vai sentir como é perder alguém importante.
Antes
que ela tenha tempo de gritar, os dentes afiados do monstro se encravam no seu
pescoço, macio, negro, e molhado de lágrimas. A presas se encravam com força
sobre-humana na carne, e prendendo o corpo ao chão com as garras, ele separa a
cabeça da jovem do resto do corpo em um só movimento. O sangue quente e amargo
escorre pelas mandíbulas do jovem monstro, deixando um rastro de morte por onde
ele passa.
[...]
Claire grita, chora, e chama pela amiga.
Sem resposta.
Durante
esse tempo, ligou inutilmente para o quarto da pousada onde a amiga se hospedava,
para a polícia... sem informações suficientes, de nada adiantou. Desesperada,
sem ter mais à quem recorrer, ela decide ligar para a última pessoa com que
acredita poder contar.
— ...Adam. Adam, é você?
—
Claire? — ele responde. — Estou te ouvindo, pode falar.
—
Adam...Deus... eu, preciso da sua ajuda. Você é rico, é influente... você tem
que me ajudar! — Um soluço de choro deixa claro para o vampiro o estado em que
ela se encontra.
— O
que aconteceu? Me diga Claire, por você não há nada que eu não possa fazer. Foi
ele, foi o Tom? Ele fez mal à você?
Ela
fica parcialmente chocada pela suspeita sobre o garoto de doze anos que se
hospedou em sua casa, pela segunda vez na mesma noite.
— ...
não, Adam. Por que raios teria haver com o Tom?
—
...ele é perigoso, Claire, e muito. — Ele hesita antes de dizer as palavras. —
Você deve vir até mim. Agora. Eu explicarei tudo para você, mas saia de perto
dele, já.
—
...não, Adam. O problema é a Evelyn. Ela foi atacada... — Antes que ela pudesse
continuar, o celular é tomado da sua mão.
Claire
olha espantada para o garoto loiro e de olhos frios que em um movimento rápido
pegou seu aparelho. E que agora fala com seu amado, enquanto a olha com
desprezo.
—
Desculpe, Adam Tepes. Acabou seu tempo, é hora da Irmandade de Sangue agir. — Fala Tom, enquanto coloca o celular
para gravar.
—
T-Tom... o que você... — Antes que ela termine a frase, vê as presas do garoto
à mostra. — Isso não...pode ser. Adam...
—
Pode sim.
Ele a
segura em um movimento, e encravando os dentes em seu pescoço, começa a sugar o
sangue de Claire Winnicott. O garoto faz questão de colocar o celular em
posição que Adam consiga ver perfeitamente o que ele faz. O sangue escorrendo
pelo pescoço dela, pelos lábios dele, os braços dela pendendo fracos... seus
olhos se fechando. Então envia o vídeo.
Adam
fica totalmente paralisado enquanto aguarda por alguma resposta daquela ligação
que parou tão abruptamente. Seu coração morto mais frio do que nunca, o suor
escorrendo pelo rosto. Então recebe o vídeo. E assiste. Uma aura intensa e
maligna emana por todo castelo, por toda a cidade. Mais intensa e poderosa do
que quando despertou, a sede de sangue e morte fluindo pelo seu corpo.
O filho do Drácula parte para a batalha.
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