Algumas coisas tendem a se repetir.
Faltavam
nove noites até meu casamento, quando Vlad fez o que fez. Peter foi massacrado
e deixado em um estado muito além daquele em que um mortal sobreviveria, e eu
fui sugada de forma violenta, até quase perder os sentidos, diante dos olhos tristes
e impotentes do homem a quem eu já amava. Quando tudo terminou, juramos fugir
juntos.
A
verdade é que apaguei pouco após isso. Como ocorrera meses atrás, fui cuidada
por Marjorie. Suas poções e unguentos ajudaram meu corpo a se restabelecer, e
mais do que nunca, ela fez seu papel de vigia. Meu quarto não era mais meu:
Marjorie dormia ao meu lado, uma garantia de que eu não tentaria nada, agora
que os planos dela estavam tão perto de se concretizar. Também tinha Alice, que
me trazia as refeições e me ajudava no banho, de modo que não tinha mais
qualquer direito à privacidade. Disseram-me que o príncipe estava em reuniões
importantes com as autoridades da capital e cidades vizinhas, e que retornaria
na noite anterior ao casamento. A distância daquele homem era um alívio, por
outro lado, a falta de informações sobre Peter era uma tortura. E assim se
passaram seis noites.
Na
sétima, algo de sobrenatural ocorreu.
— Você pode me ouvir? — Perguntava
uma voz em meus sonhos. A voz de Peter, doce e suave. — Não há distância que me impeça de chegar a você, Charlote.
— O que ele te fez? — Perguntei
em pensamento, temerosa da resposta.
— ...não importa. Esteja pronta amanhã, fugiremos
enquanto o castelo dorme. — Um momento de silêncio. — Ou terá você desistido de
arriscar tudo?
— Já lhe disse: para mim é fuga ou morte.
— Falei eu, decidida. — Estou esperando por você.
Como
deve se lembrar, parte do meu treinamento consistiu em dominar a arte das
ervas. Marjorie era uma boa mestra, e eu uma ótima aluna. Pois bem, já há algum
tempo eu guardara comigo algumas dessas substâncias e ingredientes, que
surrupiei dos aposentos dela. A mistura certa no vinho colocaria qualquer
pessoa para dormir profundamente em pouco tempo...e foi isso que fiz. Na
primeira oportunidade que tive, despejei a substância no odre que
compartilhávamos. Para não levantar suspeitas, bebi com elas como de costume,
mas não antes de ingerir a erva certa para quebrar o efeito da mistura. Uma
pessoa menos preparada seria pega, pois Marjorie era muito eficiente em
perceber alterações suspeitas no sabor e deduzir o resto. Mas eu não era uma
iniciante...sabia bem como disfarçar o gosto.
Eu
exibia um sorriso de orelha a orelha quando as duas caíram em um sono pesado. As
amarrei e amordacei na cama. Vesti o conjunto mais simples que encontrei, um
vestido grosso e curto, dividido por uma cinta de couro, um casaco negro e
botas, guardei numa bolsa joias e restos de nossa última refeição, e aguardei.
Como um anjo negro ele entrou pela janela de meu quarto, ao que corri para
abraçá-lo. Lágrimas molhavam meu rosto enquanto o apertava com força, com medo
de deixá-lo ir. Ele me abraçava de volta, e permanecemos assim até que eu me
acalmasse.
—
Temi não vê-lo de novo. — Confessei.
— Te
fiz uma promessa, não fiz? — Perguntou-me, apoiando seu rosto no meu. — E farei
o que for preciso para cumpri-la.
Peter
usava um capuz e capa cinzentos, por sobre um conjunto simples de algodão marrom.
Uma cinta prendia sua espada a cintura, e uma alça sobre o tronco prendia seu
mosquete. Calçava botas de couro, e tinha manchas de sangue tanto no canto da
boca quanto nas mãos. Após olhar para as duas prisioneiras, sacou uma adaga das
costas que estendeu a mim, perguntando:
— Você
faz ou eu faço?
Olhei
para Marjorie, a bruxa traidora. A mulher que me vendeu como a uma cabra, a
mulher que encontrou uma garota inocente e ambiciosa e transformou no seu
presente para o demônio. Parte de mim queria matá-la, mas a outra parte se
perguntava se eu me perdoaria após fazer isso. Quanto a menina Alice...eu
jamais seria capaz de lhe fazer mal, por mais que desconfiasse que ela não
hesitaria em fazê-lo a mim, se assim fosse ordenada.
— Deixe-as
viver. — Disse eu, segurando seu braço. — Só quero ir embora, não desejo ver
mais sangue.
— A
bruxa é perigosa, Charlote, sabe disso. O mal que ela lhe fez pede reparação. —
Disse ele, me entregando a lâmina. — Para sermos livres, as vezes é necessário
derramar o sangue de quem não queremos.
Vi
algo em seus olhos quando ele disse isso. A tristeza de quem fez algo do qual
não se orgulha. Mas eu estava decidida.
— Eu
disse não.
Ele
me olhou com ar de censura, mas então, se deu por vencido.
— Que
assim seja, minha senhora.
Após me segurar firme as suas costas, saltamos
por aquela janela. Achei engraçado como da mesma janela da qual saltei para a
morte pouco tempo atrás, naquele momento eu saltava para a liberdade. Com um
único movimento ele chegou até a torre mais próxima, vários metros abaixo. Se
movendo pelas sombras e com a sagacidade de um gato, desviou de cada sentinela,
pulando de um ponto a outro, até chegarmos as muralhas. Eu estava extasiada,
apesar de tudo de ruim, ser um vampiro tinha lá suas vantagens práticas. Como
Vlad me prometera, o poder estava lá. Do alto das muralhas, ainda que
abaixados, podíamos ver a imensidão da Valáquia sob um céu estrelado, o brilho
da lua me dando esperança. Eu sorri e o segurei com mais força, ao que ele
iniciou a descida.
Seus
movimentos não eram humanos, e em um instante estávamos em terra. A escuridão
era nossa aliada, e sob o manto dela Peter andava comigo, sua visão de predador
noturno permitindo que se movesse sem hesitação ou qualquer fonte de luz. Foram
horas me carregando em passo rápido, até chegarmos as fazendas e Peter decidir
invadir um estábulo. A partir dali seguimos sobre um belo e forte cavalo, rumo
a um destino desconhecido. Após mais algumas horas de cavalgada por um terreno
elevado e deserto, chegamos a uma velha cabana abandonada.
— O
sol nascerá em poucas horas, e esse lugar é distante e desconhecido o
suficiente para que não nos preocupemos com guardas antes de vários dias.
Passaremos um ou dois dias aqui, enquanto analiso nossas opções.
Eu
estava cansada da viagem, mas apesar disso, estava feliz. Era uma cabana velha,
cheia de poeira e insetos, mas eu estava com Peter, estava livre...e isso por
si só fazia dela um paraíso! Logo estávamos deitados sobre uma velha cama de
palha, aninhados um nos braços do outro.
— Que
lugar é esse, Peter? — Perguntei, curiosa. — Como sabia que estaria esperando
por nós?
— Não
sabia. Apenas conheço muito bem essas terras, e certos padrões. — Disse ele, me
abraçando. — Por sorte não há moradores, ou teríamos que tomar certas decisões.
Ele
era mesmo um monstro, mas um monstro que me amava. Um monstro que não faria o
mal por sadismo...mas apenas o necessário para me proteger. Eu me ergui da
cama, na semiescuridão, despindo aquelas roupas.
— O
sol ainda não raiou, não é mesmo? — Perguntei, com voz maliciosa. — Temos tempo
para terminar o que começamos aquela noite.
Ele
me olhou com aqueles olhos, de um verde belo e intenso, como se bebesse de
minha beleza.
— Que
seja como a minha senhora ordena. — Respondeu, sorrindo.
Enfim
demos vazão aos nossos desejos, tanto tempo reprimidos. Seus lábios macios
passeavam pelo meu corpo, que se arrepiava em resposta. Nossas mãos dançavam
pelo corpo um do outro, deslizando sobre cada curva, cada músculo, cada
contorno de carne, suor e prazeres. Montando sobre ele, me movia com avidez,
contorcendo-me nas sensações que experimentávamos naquela madrugada. Enfim
éramos um do outro, corpo e alma! O que provei naquele momento era diferente de
tudo que vivi com Vlad. Havia desejo em minha relação com o príncipe, mas um
desejo misturado ao ódio, numa ambivalência de sentimentos. Com Peter havia
desejo...mas também amor. Sem lugar para o ódio, eu podia saborear totalmente
aquele momento, sem necessidade de arrependimento ou culpa. Podia ser plena, e
aquilo era maravilhoso.
Dormi
em seus braços, e só acordei várias horas depois. A maldição vampiresca o
impeliu ao sono, uma força que só o libertou ao pôr do sol, como fazia com os
demais de sua espécie. As provisões que eu trouxe do meu quarto eram
suficientes apenas para uma primeira refeição, mas me mantiveram alimentada até
que ele despertasse. Peter era um predador, de posse de suas lâminas ele caçava
sem dificuldades pela região, sem necessidade de cavalos, falcões, cães, arco
ou mosquete. E voltava mais rápido que qualquer homem faria com a ajuda de tudo
aquilo que mencionei. Os animais que caçava tinham uma dupla função: me
alimentar com sua carne, e alimentá-lo com seu sangue.
—
Então dá pra viver disso? — Perguntei a ele, enquanto comia uma boa tira de
carne assada na fogueira. — Vocês podem matar animais e beber seu sangue... não
precisam de humanos.
Ele
lavava as mãos sujas de sangue, com água de um odre que encheu num riacho
próximo.
—
Alguns tentam... mas poucos conseguem. — Disse-me ele, resignado. — Somos
predadores de homens, Charlote. Animais impedem nossa morte, mas nos deixam
cada dia mais fracos...cada dia menos “caçadores”. E um predador que falha em ser
o que é, está condenado a sucumbir pelas garras de outro.
Então
todos os vampiros eram assassinos, e aqueles que tentavam deixar de ser,
acabavam virando eles mesmos a caça. E o Drácula era o predador supremo, e logo
viria atrás de nós, com seu exército e sua força. Teríamos afinal, alguma
chance? Eu poderia ter esperança de fugir com Peter, preservando minha vida,
minha liberdade e humanidade, ou seria tudo um devaneio de uma boba apaixonada,
condenada a se tornar a escrava vampira de um tirano?
Naquela
noite nos deitamos novamente. Entregava meu corpo e meu sangue, pois para ele,
eu queria dar tudo de mim, sem receios. Nenhum de nós admitia, mas no fundo
sabíamos que precisávamos aproveitar cada noite como se fosse a única, pois
tudo podia acabar em um instante. Peter rondava a área por onde seguiríamos,
coletando informações e buscando suprimentos. Logo deixamos a cabana, e
seguimos pelos caminhos que ele sabia serem menos prováveis de esbarrarmos com
os homens de Vlad.
Embora
meu amado fosse um estrategista experiente e conhecesse o terreno, tinha
algumas desvantagens consideráveis em sua tentativa de fuga. A primeira era a
quantidade de gente pelas cidades e estradas, tudo por conta do casamento, que foi
oficialmente adiado. A segunda era nossa fama: ele era o principal homem do
príncipe, conhecido por soldados e autoridades, e agora acusado de raptar sua
prometida. Eu era a noiva real, e para além de minha aparência já conhecida,
meus porte altivo traia minhas tentativas de parecer uma mulher comum. Mesmo
sob mantos e capuzes, corríamos risco de ser reconhecidos. A terceira era sua
condição de vampiro. Soldados humanos podiam marchar com poucas horas de sono,
as vezes até mesmo sem dormir, quando pressionados. Enquanto isso, Peter tinha
apenas do pôr do sol até o amanhecer para prosseguir com seus planos, e isso
lhes dava uma vantagem de terreno difícil de ser igualada. A quarta e última...
bem, era eu. Por minha causa, Peter tinha que procurar abrigos, quando sozinho
poderia dormir sob o chão de terra. Por minha causa, tinha que caçar e fazer
fogueiras, quando poderia apenas beber dos animais ou mesmo de algum incauto
que caísse em seu caminho. Mas por mim ele poupava aqueles que não pouparia se
estivesse só, condenando a nós dois ao destino que temíamos.
Refleti
sobre isso durante os dias que se seguiram, até que avistei ao longe os
soldados de Vlad, marchando em nossa direção. Passei horas ao lado do corpo
inerte de Peter, com uma espada em mãos, pronta para protegê-lo, assim como a
mim mesma. Foi com alívio que vi seus olhos se abrindo, novamente vivo,
novamente pronto para lutar.
— Eu tenho vantagem, uma vez que a noite
caiu sobre eles. — Me disse em pensamento, de cima de uma árvore velha. — Precisam confiar na luz de tochas, e o
terreno irregular atrapalhará seus movimentos. É hora de matar meus velhos
companheiros.
Aquelas
palavras dele me doeram, pois sabia que doíam nele. Peter se sacrificava por
mim, seu corpo, seus privilégios e seus ideais... eu devia me sacrificar por
ele também. E foi ai que tomei minha decisão. Era tarde quando ele retornou,
banhado pelo sangue de homens mortos, seus olhos carregando uma dor infinita.
Correi até ele e o abracei, aliviada pelo seu retorno.
—
Faça, Peter. — Disse eu, ainda abraçada a ele. — Me transforme em sua
igual...me faça uma vampira.
—
Está louca? — Questionou ele, se afastando. — Não vou condená-la a isso,
Charlote, eu não poderia. Como posso tirá-la das mãos dele apenas para
transformá-la em uma assassina como eu?
Com
as mãos para trás eu lhe confrontava.
— Sabemos
onde isso vai parar, Peter. Temos feito nosso melhor, e mesmo assim mal saímos
da capital! Nos escondemos como ratos, e mesmo assim os homens dele chegaram ao
nosso quintal. Se queremos ter uma chance, você sabe bem o que deve fazer.
—
Não...não. — Ele lutava contra minha ideia, era gentil demais para me desejar
isso. — Ele quer que você seja como ele, Charlote. Dará isso de bandeja ao monstro?
—
Não, meu amor. O que ele quer é me transformar na vampira dele, jamais perdoará
se for você a fazê-lo. Se for você, não só meu amante, mas também criador e
mestre — Disse eu, revelando o pulso já cortado por minha adaga escondida. — E
como não temos mais tempo, tiro de você o direito de escolha.
Pude
ver a raiva e frustração em sua face se traduzirem em um murro que rachou a
velha parede de barro que revestia a casa em que estávamos, pouco antes da
resignação tomar seu lugar.
— Eu
ainda posso deixá-la morrer. Acredite, é melhor do que aquilo que a espera. —
Ele resmungou, com as presas de fora.
Me
deitei na cama com um sorriso no rosto, ignorando sua bravata e deixando meu
pescoço a mostra.
— Faça,
Peter. Me dê o poder que sempre busquei, me dê a chave para vivermos juntos
pela eternidade.
Eu
estava em seus braços enquanto meu sangue escorria pelo pulso. Ele segurava meu
corpo com carinho, me dando um beijo doce pouco antes de cravar seus dentes sob
minha pele. Eu segurava seus cabelos enquanto ele iniciava a tomada de minha
vida... meu coração acelerado, sabendo que logo deixaria de bater. Apesar do
medo, eu sabia que essa era minha cartada final, a garantia de que Vlad não
teria o que queria. Que caso ele nos achasse, e era bem provável que fosse esse
nosso destino, jamais teria o prazer de me fazer dele. Marjorie me disse que o vampiro
criado está para sempre ligado a seu criador, com um forte vínculo que jamais
se desfaz de fato, apenas se enfraquece. Ele saberia que eu seria sempre leal a
Peter...sua única escolha seria minha morte. De uma ou outra forma, eu seria
livre.
Ouvi o
som de carne sendo atravessada, abrindo meus olhos no susto. Peter parara de
sugar meu sangue, afastando sua face do meu pescoço, com olhos arregalados e
sangue escorrendo dos lábios.
—
Charlote... — Sussurrou, pouco antes de cair, revelando uma estaca encravada nas
costas.
Das
sombras tornou-se visível a figura de uma mulher. Seus longos cabelos castanho
claros, soltos sobre a face. Suas roupas negras, apropriadas para o terreno,
seu sorriso cínico me fazendo ficar sem ação enquanto a via se aproximar e beijar
meu rosto.
— Meninas
travessas, ficam sem brinquedos. — Disse ela, sentando ao meu lado.
Eu
não conseguia pensar com clareza, enquanto via tudo desmoronar a minha frente.
Lágrimas começavam a brotar dos meus olhos, quando notei que Peter ainda dava sinais
de vida, se arrastando até meus pés.
—
Peter... resista, por favor. — Supliquei, sussurrante.
— Eu
posso entendê-la, Charlote querida. Eu também tive minhas aventuras, mas sei quando
parar e assumir minhas responsabilidades. — Ela me dizia, acariciando meus
cabelos. — Fique feliz, pois o Drácula ainda a deseja, apesar de seus muitos
pecados.
Peter
gritou de dor quando seu corpo foi preso ao chão pela espada de um homem saído
do nada. Sua capa negra revelava uma couraça esculpida com perfeição: vermelho
vivo, negro e detalhes dourados, que ostentavam no centro o símbolo do dragão, completando
a imagem daquele homem saído dos pesadelos de milhares de homens. Seus olhos negros
me fitavam como um lobo faminto diante da presa já abatida. Eu via seu ódio e
desejo expressos naqueles lábios que se abriam e fechavam, enquanto ele se
aproximava de mim.
—
Deixe-nos, Marje. — Disse ele, sentando-se no lugar dela e pegando-me em seus
braços. — Esse é nosso momento. Dela, meu ...e dele.
Vlad
fez questão de me deixar virada na direção de Peter, do mesmo modo que fizera
quando nos encontrou lutando. Peter que fazia um enorme esforço para se erguer
com a estaca no peito e a espada no tronco, enquanto urrava de ódio. Eu sentia
o hálito do monstro em meu pescoço, suas mãos duras e frias que me aproximavam
de si, trêmulas. Como se lutasse contra si mesmo, sua vontade de me fazer em
pedaços por minha traição. Eu estava fraca, assustada e abatida demais para
lutar. Eu estava enfim derrotada, e começava a aceitar isso.
— Pensaram
mesmo que poderiam fugir de mim? Hã!? Acreditaram realmente que viveriam
saltitantes e felizes nos jardins do Éden? — Perguntava ele, lambendo meu
pescoço e olhando para meu amado. — Não existe paraíso para onde fugir,
crianças rebeldes, há apenas o inferno.
Dito
isso, gritei de dor ao sentir meu pescoço ser mordido com violência. Ele me
segurava com força, enquanto sugava meu sangue com uma fúria que eu nunca
sentira antes! Minha vida me abandonava rápido, e meu coração diminuía a cada
segundo sua capacidade de tocar sua música. Perdi minha consciência pedindo
perdão para o homem que amava, o homem que derramava lágrimas de sangue. Quando,
de alguma forma mística, minha consciência transcendeu meu corpo físico, e como
um espírito eu contemplei o que se seguiu. Quando vi o Drácula sofrer.
De
joelhos, Vlad cuspia sangue. Seus olhos assustados, seu corpo todo a tremer, o
chão banhado pelo sangue que ele vomitava em meio a urros de dor!
— Maldição! O que está... acontecendo? —
Perguntou ele, para Marjorie.
Vi
minha antiga mestra e amiga. E ela sorria.
—
Lamento, Vlad III da Valáquia, Empalador...Drácula. — Zombava, Marjorie,
enquanto feria o rosto dele com uma adaga. — Você enfim fez aquilo que eu
queria. Enfim caiu para meu “Cavalo de Tróia”.
— O...sangue dela... — Ele sussurrava, com
dificuldade.
— Sim,
sim, o sangue de Charlote é o segredo. Tão delicioso pra você, não é verdade? E
quem poderia saber que seria venenoso para os da sua espécie? Que mesmo o
“Demônio imortal”, bebendo dele continuamente, e por fim o sugando até o
extremo da vida dela, no íntimo ritual que a transformaria, poderia morrer por
tal sangue?
Marjorie
gargalhava, bebendo do prazer que aquele momento lhe conferia.
— É,
eu sabia. — Disse ela, antes de desferir outro corte na face do monstro.
Vlad
tinha um aspecto demoníaco, sua face totalmente transformada pelo ódio. O
sangue teimava em sair não só pela boca, mas pelos cortes que a bruxa lhe
fizera. Após grande sacrífico Peter chegara ao meu corpo, corpo já inconsciente...ou
morto, não saberia dizer. Rasgando o próprio pulso com os dentes, ele levou seu
sangue a minha boca. Naquele momento minha visão se apagou novamente, me
sentindo ser sugada de volta sob o canto das batidas de meu coração. E de
alguma forma, eu bebi. Suguei seu sangue, como ele antes havia sugado o meu. Um
beijo de vida e morte, que me traria de volta a esse mundo. Marjorie viu seu
esforço final, e por algum motivo, decidiu ajudá-lo. Sussurrando palavras que
emanavam um estranho poder, ela fez a estaca de madeira apodrecer, até virar
pó.
Sem a
arma encravada no coração, meu amado estava livre para me guiar de volta.
— Beba, Charlote. —
Dizia ele, em minha mente. — Beba minha
vida, faça dela sua. Volte para mim...
Eu
abri meus olhos, ofegante. Sentia o gosto do sangue em meus lábios...o sabor
mais delicioso que já experimentara. Vi os olhos de Peter para mim, um misto de
orgulho e pesar neles. E então vi sua mente. Sua dor, sua tragédia. Seu coração
se abria para mim, e eu me enfiava dentro dele, com sede de conhecê-lo. Seu
amor por mim era um raio de luz em meio aquelas densas trevas que o cercavam...
a chama que o aquecia, e que iria consumi-lo.
—
Você é ainda mais belo do que eu pensava. — Disse em sua mente,
nós dois como um só. — É hora de darmos
um fim a isso.
Eu me
ergui daquela cama um novo ser. Sentia uma força e poder que nunca
experimentara antes. E sede, eu sentia uma sede imensa. Vlad não morria, o
maldito demônio estava de pé, deixando Marjorie receosa. E Peter sacou
novamente sua espada, partindo em direção a ele! Quanto a minha antiga amiga, eu
sentia seu medo, seu ódio e mágoa. Ela um dia se ofereceu a Vlad como a noiva
ideal, mas ele a desprezou, e ela jamais esqueceu disso. Com a desculpa de
encontrar o par ideal para o monstro, passou anos atrás da arma que poderia matá-lo.
Seus poderes lhe guiando enfim até mim.
Parei
diante dela, a surpresa em seus olhos ao me ver de pé, revelando o quão
diferente eu deveria parecer.
— Entende
agora, minha querida? — Perguntou-me, enquanto assistíamos a Peter atacando seu
príncipe com tudo que tinha. — Está claro o motivo pelo qual era necessário
chegarmos até esse ponto? Meus planos sempre exigiram que você fosse
transformada, Charlote, mas jamais que partisse de vez desse mundo.
Marjorie
colocou a adaga sobre uma velha mesa, e abaixou os braços, como um sinal de
submissão. Eu caminhei até ela, mordendo o lábio, como uma garota confusa e
frustrada.
— Apesar
de tudo, nossa relação sempre significou algo para mim, Marjorie. — Disse eu.
— Eu
reconheço a gravidade do que fiz, mas digo que não fiz mais que o necessário. Essa
é a chance de recomeçarmos, o que me diz? — Perguntou-me ela.
— Lhe
prometo que nós duas teremos nossa vingança. — Respondi.
Marjorie
sorriu.
— Sim, “querida”, mas não da forma que
imagina. — Disse eu, em sua mente.
E
então encravei meus dentes em seu pescoço, sugando sua vida com vontade. Pude
sentir suas tentativas de se livrar de meu abraço, totalmente inúteis diante da
força que eu agora possuía. Pude sentir seu lamento, sua dor por morrer após
tanto esforço. Pude ouvir seu coração batendo cada vez mais fraco, seu suor e
lágrimas escorrendo...e enfim senti-la morrer em meus braços. Seu sangue,
quente e saboroso, descendo por minha garganta, saciando uma fome de vida e
vingança.
Eu
era uma assassina, e me sentia bem com isso. Sequer sabia dizer se a matei por
vingança ou apenas para saciar meu instinto de sangue.
Santo Deus, agora havia mesmo cruzado o portão
final.
A
coloquei no chão gentilmente, fechando seus olhos como um último ato de
respeito. Eu tinha poder, e dado por Peter, não por Vlad. Mesmo que pequena,
era uma vitória. Após encerrar minha história com minha antiga amiga e mestra,
pude voltar a realidade. E nela, Vlad e Peter lutavam! Parte da cabana estava
destruída no processo, e eles se encontravam do lado de fora. O Drácula
levitava acima de mim, seu sangue jorrando pelos vários cortes feitos por
Peter. Ele estava incrivelmente pálido e ofegante, enquanto apertava o pescoço
do meu amado.
—
Como...como pôde? — Perguntou ele, olhando para mim e Peter. — Como ousou fazer
isso a ela? Ela era minha, seria minha pela eternidade!
Após
expressar sua indignação por palavras, Vlad as expressou em violência. Mordendo
o pescoço do meu amado e sugando seu sangue! Não, eu não poderia deixar aquilo
acontecer, não poderia deixá-lo matar o homem que eu amava. Peguei a espada de
Peter que estava caída e saltei em direção ao monstro! Com um movimento eu
cortei o braço com que Vlad o segurava, separando os dois no processo. Nós três
caímos, eu e Vlad de pé, Peter de joelhos. Tepes não gritou, apenas segurava o
que restou do seu membro arrancado, por onde jorrava sangue abundantemente.
—
...aprendeu direitinho, criança. — Disse ele, para mim.
—
Tive um bom mestre. — Respondi.
Ele
caiu de joelhos, apoiando-se no braço que ainda restava enquanto suava sangue.
Eu mantinha a espada erguida, protegendo a mim e ao homem que amava. Após algum
tempo de sofrimento, o Empalador me mostrou seu sorriso sádico, dizendo:
— Uma
pena que seu mestre irá comigo para o túmulo.
Dito
isso, vi Peter como ele, vertendo sangue em abundância, pela boca e cortes
feitos por seu inimigo. Sentia meu criador e amado sofrendo uma agonia mortal.
Eu o abracei, olhando em seus olhos, belos e tristes. Chorando pela sua
dor...dor que eu causei.
— Peter... eu lamento tanto... — Eu
falava em seu coração, sentindo sua dor, sentindo o medo que ele sentia por
mim, pelo meu futuro sem ele. — Se soubesse
da natureza do meu sangue, jamais o ofereceria a você.
Ele
me olhava com ternura, encostando seu rosto no meu.
— Não há
lugar aqui para arrependimentos. — isse ele, segurando minha mão e então
beijando meus lábios. — Agora vá, termine
o que começamos, destrua nosso vínculo com o monstro.
Peter
fechou então seus olhos... para sempre. A dor que senti era imensa, e lágrimas
rubras manchavam minha face. Eu me ergui, segurando a espada de Peter em minhas
mãos. Quando humana, ela parecia pesada...agora era leve como uma espada de
madeira. Vlad gargalhava, ainda que com dificuldade. Zombava da minha perda,
dos sacrifícios que fizemos para chegar ali. Aquilo não era perdoável.
—
Acha que com minha morte estará livre, Charlote Berthory? — Ele perguntava.
Despojado de toda sua imponência e poder, parecia um homem doente. — Acha que
meus servos fiéis deixarão você livre? Pouparão sua família?
Eu
encostava a espada em seu pescoço enquanto ele tremia, meus olhos frios e
cheios de dor.
— O
que eu sei, é que o reinado de Vlad Tepes termina hoje. — Disse eu, arrancando
a cabeça do monstro de sobre os ombros.
Lá
estava eu, cercada pelos cadáveres da minha antiga amiga, mestra e primeira vítima.
Do corpo do homem a quem eu amei, meu salvador, criador e amante. E por fim, do
tirano que me escravizou. Do monstro que destruiu tantas vidas, daquele a quem
eu desejei e odiei, e por fim, ceifei a vida. Lá estava eu...sozinha. Enterrei
Peter, meu último ato de amor. Não ali, onde outros poderiam profanar seu
túmulo, mas em um lugar isolado e belo, distante daquilo tudo. Bebendo o sangue
de soldados eu cheguei até os limites do reino, e com o dinheiro e poder que
obtive, dei adeus a Valáquia.
Voltei
a Inglaterra, onde meu primeiro passo foi procurar minha tia. Titia Matilda
estava acamada, aquela mulher antes tão forte, estava frágil e debilitada. Seu
coração se alegrou ao me ver, tão triste que ficara ao pensar que eu morrera.
Fiquei sabendo que o antigo casarão de Marjorie pegou fogo na noite em que
deixamos a cidade de York, e como souberam que ela partiu ao lado de um homem
estrangeiro, concluíram que o incêndio foi proposital. Lá morreram seu marido
doente e outros empregados, e muitos acreditaram que eu estava entre as
vítimas. Minha família na Irlanda recebera essas notícias, e após alguns meses
realizaram um funeral simbólico. Minha partida trouxe dor a todos, e eu temia
que minha volta fizesse ainda pior.
Enviei
uma carta aos meus pais amados, com mentiras minimamente aceitáveis, tendo como
realidade apenas ter sido levada e mantida a força, e minha saudade deles.
Prometi visitá-los assim que minha tia melhorasse...embora eu sabia que isso
era um sonho infantil. Titia faleceu um mês após meu retorno, tempo em que me
esforcei bastante para esconder meus motivos para nunca sair ao sol e só estar
disponível a noite. Eu bebia o sangue de animais pequenos, apenas o suficiente
para me manter disposta e não levantar suspeitas. Quando Matilda se foi, suas
posses foram dadas a mim como herança. Muitos deviam me ver como a garota
oportunista que fugiu para viver aventuras e só voltou quando soube que a tia
velha estava para bater as botas. Como eu podia ler suas mentes, era fácil
comprovar isso. Tentei contribuir generosamente com a caridade como forma de
diminuir essas acusações.
Duas
semanas após a morte de minha querida tia, tempo que levei para colocar tudo em
ordem, parti rumo a Irlanda, para visitar minha família. Faziam cerca de quatro
anos que não abraçava meus pais, e isso me angustiava. Sentia saudades do
cheiro deles, do seu calor, seu carinho...até mesmo de suas broncas. Sabia que
não seria fácil enganá-los sobre minhas novas limitações, e passei toda a viagem
pensando em desculpas convincentes sobre isso. Quando cheguei em terra, já as
tinha em quantidade razoável.
E ai
minha dor só aumentou.
Eles
estavam mortos, e isso fazia uma semana. Foram encontrados na mesa de jantar,
sem uma gota de sangue em seus corpos. Obra de demônios, o padre repetiu em seu
sermão no funeral daquele casal de cristãos devotos, segundo me disseram.
Passei toda a noite chorando diante de seus túmulos. Com o peso de suas mortes
nas costas e sem mais ninguém no mundo, voltei para a Inglaterra. Coloquei uma
mulher confiável à frente dos negócios de minha tia, agora meus negócios. Se
fora uma dama que construíra aquilo, nada mais justo que outra levá-lo a
frente. Passei a ficar nas sombras, administrando a distância, e constantemente
em viagens. Quando se permanece para sempre com a face de vinte e um anos,
ficar por muito tempo no mesmo lugar não é uma escolha.
Me
comunicava por cartas, raramente marcando algum encontro, momentos esses em que
tomava todas as precauções e truques para que minha escolhida não suspeitasse
de nada. Repeti a fórmula pelas décadas seguintes, sob outros nomes, de filhas
e netas de Charlote Berthory. Passava longos períodos bebendo o sangue de
animais indefesos, e outros tantos bebendo sangue humano. Não foram poucos
aqueles que matei, fosse pela urgência, fosse por serem uma ameaça. Sim, muitos
inocentes morreram por minhas mãos, e acredite, eu lembro de todos. Carrego a
dor deles comigo...dor que pouco a pouco foi me consumindo.
Se
passaram cento e cinzenta anos, até eu desistir de tudo. Uma noite me deitei
sob a terra abaixo de minha casa...e simplesmente dormi. Sem qualquer motivação
para acordar, permaneci assim pelo século seguinte. Quando despertei novamente,
o mundo havia mudado bastante. Era 1920, e eu não tinha mais nada. Acredito que
o desafio de conquistar coisas de novo, foi parte do que me fez voltar a sentir
alegria em abrir os olhos. Também passei a me esforçar mais para agir
dignamente, procurando matar apenas quem merece morrer... geralmente o tipo de
gente que é maioria no mundo. E após cerca de duzentos e cinquenta anos desde
que Marjorie se revelou uma traidora, eu voltaria a ter uma amiga.
Seu
nome era Carmila, uma vampira como eu. Ela aparentava ter por volta de trinta
anos, sendo mais alta que a média, de pele muito branca e cabelos e olhos muito
negros. Vestia-se sempre de modo recatado e com cores opacas, com o cabelo em
um coque de época, e roupas que contrastavam com o período em que vivia. Sim,
estávamos no início do século XX, e ela ainda se vestia como alguém do século XIX.
E bem, esse contraste permanece até hoje. A diferença é que agora no século XXI,
ela se veste como alguém do início do século XX.
— Me
visto como eu decidir me vestir, e me sentir bem...e só. — Falava ela, ou
melhor, dizia em minha mente, pois coincidentemente, nossos dons eram
semelhantes, e ela não parecia gostar muito de falar. Aliás, não parecia gostar
muito de nada em geral, exceto do sangue do pobre animalzinho o qual ela
quebrava o pescoço antes de derramar seu sangue dentro de uma taça vazia. — Se
alguém me aborrece ou desconfia demais, ele vira meu jantar....ou eu mudo sua
mente. Dependendo de meu humor... na noite.
Apesar
da rispidez, era raro que Carmila matasse. Minha nova amiga era poderosa, com
um dom de vasculhar e dominar mentes mais fracas. Por outro lado, era tão
frágil fisicamente quanto uma vampira poderia ser, o que fazia um contraste
interessante. Ajudávamos uma a outra, e continuamos assim até hoje.
— Um
dia farei você evoluir, minha amiga. — Dizia eu, e ainda digo. — Farei vestir
roupas da moda, trocar essa vitrola por um rádio potente e abandonar essa tv
preto-e-branco por uma led tela grande. Quem sabe até, arrumar um namorado.
Carmila
apenas me encara quando digo isso, cética sobre minhas palavras. Mas eu não
perco totalmente as esperanças...e isso é parte do que me motiva hoje em dia.
Eu
sou Charlote Berthory, atualmente dividindo um casarão com minha amiga numa
área isolada de York, cidade na qual leciono História, numa universidade. Ainda
sofro por Peter...meu grande e único amor. Sofro pela traição de Marjorie,
minha antiga amiga e mestra. Sofro pelo que vivi com Vlad, o demônio que roubou
minha virgindade, escolhas e humanidade. Sofro por minha família que sofreu por
minha causa. E sofro por meus erros...e não foram poucos.
Não
sei o que o destino me trará, ou por quanto tempo poderei manter essa vida,
antes de ter que recomeçar do zero. Não sei se minha amiga apática logo se
entregará ao sono dos mortos como eu mesma fiz, ou se eu mesma voltarei a
fazê-lo um dia. Mas de uma coisa eu estou certa: eu estou livre, e sou dona do
meu destino.
E isso... é uma vitória que ninguém pode
me tirar.
Gostei muito...prendeu minha atenção e fez querer ler sempre o outro capítulo... parabéns pela criatividade, pois mesmo sendo uma história de vampiros não dá para associar a outras histórias...fico aguardando os próximos textos rs
ResponderExcluirQue bom que gostou, Emília. Em breve eu posto o primeiro capítulo da nova história, com outro personagem mas com uma pegada parecida. Abraços.
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