quarta-feira, 25 de maio de 2016

Vampira Charlote - Parte III


Nem para o sol nem para a morte se pode olhar fixamente.

A frase acima não me pertence, mas sim, ao filósofo favorito de Marjorie. Sim, aquele da França. Me vi obrigada a lhe dar razão, pois fechar os olhos foi o primeiro passo do meu salto para a morte. Senti o vento gélido da noite contra o meu corpo em queda, o contato de finas gotas de chuva e o som abafado sobre meus ouvidos. Meu coração estava disparado e meu corpo todo tremia, mas eu sabia que aquilo acabaria em um instante. A vida é mesmo algo efêmero.

E então, o inesperado.

Senti braços firmes ampararem meu corpo, me segurando pelo tronco. Antes que pudesse descobrir a quem pertenciam, vi que ainda estava em queda, mas dessa vez, em direção horizontal. Meu salvador protegia meu corpo o envolvendo contra o seu, enquanto suportava os sucessivos impactos contra o chão molhado de uma torre próxima. Por um momento, me senti novamente desamparada e em plena queda, mas logo sua mão voltou a me segurar. E então eu o vi: Peter.   


— Aguente... firme. — Ele me disse, enquanto me segurava pelo braço direito, e suportava a dor de uma haste de metal que atravessou seu ombro esquerdo. 

Seu sangue jorrava farto pelo ombro, para além de outros ferimentos causados pelos castigos anteriores. Ele rilhava os dentes e se forçava a erguer o próprio corpo e soltar-se daquilo. Naquele momento, minhas dúvidas e medos haviam perdido a importância. Ele sofria por mim, e não era isso o que eu buscava. A altura ainda era assustadora, e olha que já havíamos caído muitos metros. Evitando olhar para baixo e com a ajuda da sua mão, eu subi. Depois, me deixei cair ao chão enlameado.

Sem ter que se preocupar comigo, ele pôde enfim se libertar da haste. Aquele homem de cabelos molhados sobre o rosto me encarava com olhos tristes, sequer parecia dar atenção a enorme ferida aberta de uma ponta a outra do ombro. Eu tive vergonha de encará-lo, pois não sabia o que dizer. Deveria agradecê-lo por salvar minha vida? E por acaso, diante do futuro que me aguardava, poderia considerar aquilo como algo bom?

— Me perdoe. — O ouvi dizer.  

— Não entendi. — Respondi, confusa.

— Eu lhe peço perdão, minha senhora. Sei que não desejava ser salva. Sei o que lhe aguarda, e mesmo assim a impedi. — Ele dizia, como se pudesse ler meus pensamentos, olhando de cima para aquela jovem suja e molhada que era eu. — Mas sua vida é valiosa, e é meu dever preservá-la.

Eu deveria me sentir tocada pelo esforço dele, mas algo em suas palavras acendeu minha raiva, me fazendo dizer:

— “Valiosa”? Sim, imagino o quanto! Valiosa para o meu dono, como uma vaca leiteira para um fazendeiro, ou um vestido de linho para uma dama nobre.

— Por favor, não me interprete dessa forma. — Disse ele. — Sim, eu tenho o dever de protegê-la, foi para isso que fui designado. Mas a senhora... seu valor não é o de um objeto, você é especial pelo que é. Sua determinação em lutar contra o destino é invejável. Você está disposta a tudo, apenas para sair da sua gaiola doura...

Ele empacou, como se houvesse falado demais. Eu me ergui, curiosa.

— “Gaiola dourada”, é isso que ia dizer? Onde ouviu isso? Vamos, me diga! Aliás... como conseguiu chegar a mim a tempo, como soube o que eu fiz?

Ele desviou o olhar por um momento, parecendo envergonhado.

— A verdade é que posso ouvir seus pensamentos, senhora Charlote. Sua mente para mim, é um livro aberto.

Eu fiquei pasma.

— Isso... quer dizer que desde o início, tudo o que eu pensava, era claro pra você? — Eu perguntei, preocupada, me lembrando dos meus pensamentos sobre Vlad, sobre Marjorie... e sobre ele.

— Não tudo. Só entrei em sua mente quando necessário, para evitar que corresse perigo, ou fizesse uma bobagem. — Ele confessou. — Não fui escolhido por ser o mais forte, mas por ser aquele que melhor poderia vigiá-la. E exatamente por ouvir seu coração eu soube o que você faria, e me mantive vigilante até o momento em que o fez.

Eu me afastava, de braços cruzados, irritada e confusa.

— E então você contava tudo a ele, ao seu mestre? — Indaguei.

— Não, jamais a exporia dessa forma. Meu dever é mantê-la em segurança, e desde que eu faça isso, os detalhes são irrelevantes para ele. Nunca foi minha intenção ofendê-la, senhora. E é por conhecer o seu íntimo, que lhe peço perdão novamente. Sei quem você é realmente, e tudo que perderá para sempre ao se tornar dele. E lamento profundamente por isso.

Ele terminou de falar, e sem que eu percebesse, havia um sorriso na minha face.

— Bom, o que está feito, está feito. — Disse eu, encarando novamente aquela ferida horrível que não cicatrizara. — Creio que é hora de cuidarmos disso.

Dito isso, me aproximei dele com meu vestido molhado, revelando as curvas do meu corpo. Afastei meus cabelos para o lado, deixando o pescoço exposto.

— Beba. Eu fui a culpada disso, preciso me redimir.

O vampiro se afastou, tímido, desviando o olhar do meu corpo.

— Senhora, eu não poderia. — Ele disse, envergonhado. — Se meu senhor souber, as consequências podem ser terríveis, para nós dois.

— Não me olhe como se eu estivesse te chamando para minha cama. — Quando disse isso, um pensamento atrevido me fez sorrir. — É apenas sangue. Não parece que você vá se curar sem isso, e aparecer desse jeito no castelo levará a perguntas perigosas.

— Ainda assim, eu não deveria. Nem a senhora.

— Olha, eu já fiz algo hoje que não deveria fazer, e que meu noivo jamais deve descobrir. Creio que posso guardar segredo desse momento, se você guardar segredo sobre o que fiz.

Ele ficou pensativo por um instante, e então concordou.

— Eu guardarei. — Disse, por fim.

— Agora beba, Peter. Encare como uma recompensa pelos seus bons serviços, já que dizem que meu sangue é especial.

E então, ele bebeu.

Senti o toque macio dos seus lábios sobre o meu pescoço antes que seus dentes afiados se encravassem em minha pele. Por mais que ele tenta-se evitar, a intimidade do ato carregava todo um teor sexual, me fazendo agarrá-lo com força contra mim. Não sei quanto tempo levou, creio que não muito, já que ainda me sentia bem quando terminou.

Eu estava ofegante, e ele me olhava com desejo mal disfarçado. E então se afastou, seu ferimento já cicatrizado. Meu pescoço já estava curado também, um truque comum entre eles, ferir o próprio lábio ao fim do ato, para que seu sangue regenere a pele da vítima. Assim, eliminando a evidência da mordida.

— A levarei ao seu quarto, senhora. E então seguiremos como se nada disso tivesse acontecido. — Ele me disse, desviando o olhar.

— Nada, nada. — Falei, com um sorriso sapeca.

Ele me tomou em seus braços e fez o impossível. Com um único salto, chegou até minha janela. Uma vez de volta ao quarto, me aproximei do castiçal acesso, para aquecer minhas mãos geladas até que pudesse vestir roupas secas.

— Peço que durma, e não invente mais nada por essa noite. — Ele me disse, olhar de censura.

De costas para ele, apenas sorri maldosamente, enquanto procurava roupas quentes, deixando parte do meu corpo a mostra.

— E o que mais de errado eu poderia fazer nessa noite?

Sem qualquer resposta, ele desapareceu pela janela. Eu estava começando uma brincadeira perigosa, cujas consequências poderiam ser terríveis. Mas e se fosse esse exatamente o fim que buscava? Trair o demônio imortal com seu braço direito, seu último servo leal, não seria a melhor forma de feri-lo? De vingar-me? E ainda que meu fim fosse a morte, mostraria a ele que até o final meu destino me pertenceu, e não a ele.

Santo Deus, pensei eu, como fui me perder tão rápido? 

Os dias e noites se passaram sem que qualquer outra pessoa descobrisse o que ocorreu naquela noite. Mas nós dois sabíamos, e eu estava certa de que aquilo era só o início de algo maior. Eu não conseguia tirá-lo da minha mente, e a distância de Vlad, novamente enfiado em suas batalhas, não ajudava nisso. Peter era um monstro como ele, bebia sangue humano...ainda assim, parecia tão diferente!

Por duas noites ele me evitou como pôde, mas para não levantar suspeitas, lá estava ele novamente ao meu lado.

— Sua alteza, Vlad Tepes, pediu para informá-la que retornará dentro de três semanas, senhora Charlote. — Disse ele.

— Isso é ótimo, não é mesmo? Após sua volta, ainda faltará uma semana para o meu casamento. — Indaguei. — Mas três semanas são bastante tempo, e gostaria de me divertir um pouco durante esse período. Pode me ajudar nisso, Peter?

Foi divertido vê-lo ficar desorientado por alguns instantes.

— Quero aprender esgrima, e se devo ter um professor, não desejo nada menos que o melhor disponível. Quero ter o que mostrar ao meu noivo quando ele estiver de volta.

Me pergunto se ele leu minha mente antes de responder, na verdade, eu estava sempre pensado nessa possibilidade. Caso lesse, saberia que pensamentos indecorosos passeavam por ela, mesmo quando eu não os desejava.

— Isso será providenciado, senhora. — Disse-me ele, cordial.

Minhas aulas começaram na noite seguinte, em uma área ampla, bela e isolada do castelo, e levavam cerca de duas horas. Usávamos espadas de madeira, para minha própria segurança. Era divertido e excitante, eu dava tudo de mim, levantando e abaixando aquela coisa de madeira até ficar ensopada e exausta. Foi o que de mais físico tivemos desde aquela noite. E ao fim de minha primeira semana de aula, ele começou a dar sinais de estar aproveitando aquilo tanto quanto eu.

— Disseram-me que enfiou uma faca de carne por nove vezes no coração do meu príncipe. — Ele disse, enquanto desviava e bloqueava meus ataques, lentos e previsíveis. — Eu esperava mais de tal mulher.

Era a primeira vez que ele me desafiava daquela forma, não pude deixar de rir.

— O segredo está no improviso. — Eu disse, quebrando a espada com o pé numa quina, e transformando-a numa estaca improvisada. — Agora eu tenho o necessário pra matá-lo, não?

É, eu sabia sobre estacas no coração. Não que Marjorie ou algum deles me dissesse, mas eu era curiosa e o castelo tinha a mais vasta biblioteca sobre esses temas que já conheci. Uma estaca de madeira encravada no peito era o fim de qualquer vampiro, ou quase, pois o Drácula era sempre a exceção a toda regra.

— Para o seu azar, estacas não atravessam um peitoral de aço. — Disse ele, batendo com os dedos no metal abaixo da capa. — Além disso, sua estaca é tão precária que dificilmente atravessaria um tronco do jeito certo, e sem se partir no processo. Estacas tem que ser bem feitas, ou são inúteis.

Ao dizer isso, destroçou minha arma com a mão nua.

— Sem estaca, minha única chance seria cortando sua cabeça com uma espada de verdade, certo? — Perguntei.

— Isso ou me deixar para queimar no sol. Ambas coisas impossíveis para a senhora.

Ele então parou, olhando para a entrada. E a vi, Marjorie enfim retornara de suas viagens pelo reino.

— Parece que andou estudando, Charlote querida. — Disse-me, sorrindo.

— Quando temos mestres ruins, nos tornamos autodidatas. Ou isso, ou achamos mestres melhores. — Disse eu, me virando para Peter.

— Pode nos dar um momento? — Ela perguntou ao vampiro, ao que ele nos deixou a sós.

Nos sentamos diante de uma pequena fonte com a imagem de um anjinho no centro. Ela mexia no próprio cabelo e me examinava, permanecendo dessa forma por um longo tempo.

— Foi pra isso que interrompeu minha aula, Marjorie? — Perguntei, incomodada com seu olhar.

— Há algo de diferente em você, Charlote. — Disse, brincando com meu nariz. — Vejo algo em seus olhos que não via antes.

Me esforcei para não demonstrar nenhum sinal de abalo diante da frase dela. Pensando se ela havia percebido o que havia entre Peter e eu, se ela me leria assim tão facilmente. Ou se seriam seus poderes, espíritos a lhe sussurrar segredos. Eu sabia que eles existiam no castelo, as vezes os sentia, e eram muitos. Afinal, havia muita dor e morte naquele lugar.

— Tem razão, é que não aceito mais ficar passiva a tudo isso. Se meu destino é me tornar uma vampira, me tornar a princesa da Valáquia e esposa do Drácula, desejo ser forte. E a esgrima é parte disso. — Havia algo de verdade naquilo, mas não tanto assim.

Ela mexia os dedos de forma ritmada, assobiando uma canção francesa da qual nunca gostei.

— Eu quase acredito em você, Charlote, mas uma parte minha, teimosa e ranzinza, me diz que há mais ai do que você me diz.   

— Não insinue, fale de uma vez. — Exigi.

Ela apenas sorriu.

— Esqueça isso. O importante, amiga querida, é que seu dia está próximo. — Me disse, pegando em minhas mãos. — Você se tornará a princesa, “diante dos homens e de Deus”, e então se tornará uma vampira, “diante dos vampiros e do Diabo”.

Disse, irônica.

— Não estrague isso, Charlote, não agora que está tão perto. — Sussurrava ela, apertando minhas mãos com mais força conforme prosseguia. — Você já se entregou a ele, seu sangue e corpo, ele já é seu! Não lhe dê motivos para mudar de ideia sobre você. Deve se casar com ele, ser nomeada princesa, lhe deixar transformá-la...

— Me largue! — Disse eu, soltando minhas mãos dela. — Não preciso dos conselhos de uma bruxa traidora, não preciso que me diga como devo ser a moeda de troca perfeita para os seus planos.

Peter já se mostrava visível para nós.

— Não se ache tanto, minha amiga. — Ela me disse, ambas de pé. — Você é especial, Charlote, não estaria aqui se não fosse. Sua beleza, seu ímpeto, sua esperteza e seu sangue fazem de você a candidata ideal...mas nem por isso insubstituível. Levei sete anos na Europa buscando a virgem certa para o monstro, e garanto que posso esperar mais catorze, se necessário for. Ainda estou longe da velhice, e como deve lembrar, tempo para o seu noivo não é problema algum.

Fiquei surpresa com essa revelação, e também com a seguinte.

— Assim como você, eu já estive nos braços dele, do seu príncipe. Conheci o prazer e o horror que ele representa, e posso dizer que se há uma virtude que ele não possui, minha querida, é a misericórdia. — Ela se aproximou de mim ao dizer isso, e me fez um leve corte na mão, de onde retirou uma gota de sangue que levou a boca.

Soltei um gemido leve de dor, enquanto puxava minha mão de volta. No mesmo instante, Peter já estava entre nós, sua espada sobre o pescoço de minha mestra. Ela apenas se afastou, me dizendo:

— Lhe dê motivos para se irar, e ele beberá seu sangue precioso, Charlote. Só que diferente de mim, será direto do seu coração.

Marjorie se foi, me deixando sozinha com Peter e meus pensamentos.

— A aula está encerrada por hoje, senhora. — Ele me disse, me encarando com a seriedade de quem deduzira o que foi ali discutido.

Eu fiz que sim com a cabeça, e voltei aos meus aposentos. Passei o resto da noite pensando nas palavras dela, e no futuro a minha frente. Podia sentir a presença de Peter do lado de fora, me guardando... ao mesmo tempo, me tentando a convidá-lo para minha cama. Eu resisti, escorada na porta pelo lado de dentro. Se ele entrou em minha mente, e meus instintos me dizem que o fez, ele soube o que eu queria, e resistiu igualmente.

Nossos treinos continuaram, e eu me esforçava muito para aprender o máximo possível no pouco tempo disponível. Eu sempre tive facilidade em aprender coisas novas, e isso não se limitava a erudição. Além das aulas, eu passava a maior parte do meu dia treinando aquilo que ele me ensinava: a postura correta, os movimentos básicos de corte, bloqueio, e estocada. Devido a minha determinação, logo passamos para as espadas de verdade. Elas eram mais pesadas, e exigiam atenção, pois um erro bobo qualquer poderia resultar em ferimentos sérios. As noites seguintes passaram rápido, minha única alegria real, o som do metal de nossas armas se chocando.

Aquela era nossa última noite de treino antes do retorno de Vlad, dali a duas noites. Embora meu noivo seria informado de que fui treinada por seu campeão, Peter preferia que ele não nos visse nesses momentos. Praticamos em nosso santuário particular, sob os olhos da lua e do anjo da fonte. Eu fazia questão de demonstrar minha evolução, os resultados do meu treinamento sob o manto do segundo melhor espadachim da Europa, perdendo apenas para o Drácula! Foram menos de três semanas completas, mas eu já me mostrava uma espadachim razoável, dizia ele.

— E nossa última noite juntos chegou ao fim. — Suspirei eu.

— Sim, e na verdade, mais do que isso. — Disse ele. — Quando meu mestre voltar, pedirei para me unir aos seus exércitos, em batalha. Se possível, antes do casamento.

— O que está dizendo? — Questionei, irritada. — Seu trabalho é me proteger, você sabe disso!

Ele apenas me fitou com aqueles olhos tristes.

— Sabemos bem como a minha presença é perigosa para você, Charlote. — Ele sussurrou, naquele noite fria e sem estrelas. — Sabemos como tem sido difícil resistir um ao outro. Fingir que não sentimos nada.

Eu sabia que ele me queria, mas ouvir aquilo dos seus lábios, isso era diferente.

— Sim, eu a desejo. A desejo e a amo, como nunca amei mulher alguma até hoje. A amo com todas as forças, e a faria minha, caso isso não nos condenasse a morte certa! 

Então, eu fiz.

Me lancei em seus braços, o abraçando forte! Ele me amava... e ele iria embora. Talvez, para sempre. Nada mais importava, não havia ninguém ali para nos observar naquele lugar mal iluminado e vazio, e se perdesse esse momento, poderia jamais ter outro. Eu o beijei, o beijei sem pensar em mais nada além do gosto dos seus lábios. Ele hesitou de início...mas logo foi vencido por seu coração. Nos beijamos longa e intensamente, e então, nos afastamos.

— Essa noite, Peter, você virá ao meu quarto. — Disse eu, com um sorriso atrevido.

Ele balançava a cabeça, envergonhado, antes de me dizer:

— As suas ordens, minha senhora.

Foi com um sorriso no rosto que empunhamos novamente nossas espadas, nossas forças revigoradas. Se era uma despedida, que fosse inesquecível, que arriscássemos tudo! Brincávamos como crianças, para depois nos deitarmos como amantes, e isso tornava aquela noite fria e triste, algo para jamais esquecermos.

E, de fato, jamais esqueceríamos dela.

Eu estava exausta, quando cruzamos nossas espadas pela última vez. Após o som do choque das lâminas, fiz o movimento natural de afastá-la...mas estranhamente não se moveu. Algo a segurava junto a lâmina de Peter. Não algo...mas alguém.

— Boa noite, crianças. — Disse Vlad, entre nós dois, mantendo com os dedos nossas espadas unidas. — Se divertindo muito?

Eu congelei naquele momento. Em um instante estávamos sozinhos, e no outro, ele estava ali! Nem mesmo Peter, com suas capacidades sobre-humanas, percebera a tempo. Drácula era mesmo um monstro.

— Perdão, alteza. — Disse Peter, tentando não demonstrar sua surpresa. — Sua senhora está animada com a conclusão de seu treinamento, e acabei contagiado por sua alegria.

Lá estava o Empalador, vestindo sua armadura completa, vermelha, negra e dourada, com uma grossa capa e a espada na cintura. Seus olhos passeavam entre o vampiro e eu, com um sorriso sinistro na face.

— Entendo. — Disse ele, ao soltar nossas espadas. — De fato, o som de suas risadas pode ser ouvido a léguas de distância.

Eu lutava para manter a calma, com meu coração a mil, e o suor escorrendo pelo meu rosto. A grande questão era: há quanto tempo ele estava ali? O quanto ele viu e ouviu?

— ...Charlote? — Voltei a mim com sua voz me chamando. — Algo a perturba, minha amada?

— Você me assustou! Meu coração está quase saindo do meu peito agora, graças as suas brincadeiras de mau gosto! — Tentei parecer irritada, como um modo de disfarçar meu medo. — Há modos mais cavalheirescos de surpreender uma dama, sabia?

— Lamento muitíssimo por isso. Creio que os horrores da guerra tornaram meu humor negro e ...até mesmo um tanto sádico. — Ele dizia, beijando minhas mãos. — Mas vê-los sorrindo, minha noiva sempre tão pensativa, assim como meu honrado Peter, sempre tão sério, me deixaram animado para brincar também.

Peter e eu olhávamos para ele, sem entender o que queria.

— Peter, meu fiel servo, o que acha de brincar um pouco com seu mestre? — Ele perguntou, desembainhando sua magnífica espada. — Charlote precisa testemunhar uma luta real antes de ser aprovada, não concorda?

— Como vossa alteza quiser. — Disse Peter, empunhando a própria espada.

E então, começaram.

Vlad avançava, sua lâmina se chocando contra a de Peter, repetidamente. Peter desviava e bloqueava com habilidade e graça, contra-atacando quando encontrava oportunidade. Inicialmente, pareciam estar no mesmo nível, mas isso não durou. Os golpes de Vlad foram se tornando mais e mais rápidos, e Peter tinha cada vez mais dificuldade para acompanhar seu ritmo. O olhos de ambos se tornaram rubros, e logo eu mal era capaz de enxergar seus movimentos!

— Vamos! Me mostre do que é capaz! — Vlad gritava, sua voz, assustadora. — Lute como se sua vida dependesse disso!

— Que assim seja. — Respondeu ele.

Vi meu amante avançando contra seu príncipe, desferindo uma série de golpes impossíveis contra ele, alguns dos quais cortaram sua pele e derramaram sangue. Via Vlad desviando e bloqueando, e a cada golpe recebido, retribuindo com um duas vezes pior. A cena se tornava a cada momento mais desesperadora, até Peter ser arremessado contra a fonte, fazendo o anjo de pedra se partir ao impacto de seu corpo. Vlad exibia ferimentos leves, enquanto seu campeão, já estava com ferimentos graves. Vi quando Vlad desceu sobre ele, sua espada encravando fundo no tronco de seu servo leal. Vi, e gritei!

— Está louco!? O que está fazendo?

Ele me encarou com aqueles olhos de assassino, olhos que me fizeram congelar até a alma, e então sorriu. Sua espada cortava freneticamente, o sangue de Peter espirrando em seu algoz e até mesmo em mim, enquanto o mesmo urrava de dor, até soltar a própria espada. Vi quando Vlad o ergueu pelo pescoço, apertando com uma força capaz de esmagar ossos humanos. E por fim, o lançou ao chão.

Eu chorava...chorava de medo, e ódio. Peter estava horrível, seu tronco e braços jorrando sangue em abundância, dezenas de cortes abertos por todo seu corpo. Vlad guardou sua espada, e diante de uma vítima de joelhos, se virou para mim.

— Tenho sede, Charlote. — Ele me disse, calmo.

— ... como é? — Eu não conseguia imaginar que fosse o que eu pensava.

— Disse que tenho sede. Me dê seu sangue...agora! — Ele me ordenou com aqueles olhos vermelhos, olhos contra os quais eu não podia lutar.

Fez questão de me deixar virada para meu amante, enquanto sugava meu sangue com avidez. Não, ele não se conteve, pelo contrário. Eu gritei de dor quando ele encravou seus dentes com violência, e chorava enquanto sentia minha vida sendo sugada pelo demônio. Peter observava a tudo, impotente. Dessa vez não havia espaço para o desejo em meu coração, apenas para o ódio. Eu não seria dele, jamais seria dele! Não seria sua esposa, não seria sua vampira.

Quando finalmente terminou, eu estava exausta, frágil e ofegante. Ele me deixou no limite de minhas forças, e então me largou, diante do homem que eu arruinei. O homem que eu já amava. Eu fitava os olhos esverdeados de um vampiro que chorava lágrimas de sangue.

— Eu fugirei, Peter. Fugirei ou morrerei. — Disse eu, em meio as lágrimas. — Você virá comigo?

Ele se virou para mim, enquanto enxugava as próprias lágrimas.

— O Drácula não terá você.  — Ele me disse, confiante. — Isso é uma promessa.


Nesse tempo, eu ainda acreditava em promessas. 


*** NOTA DO AUTOR***

Essa história termina no próximo capítulo, ficarei muito grato se você deixar um comentário no blog com a sua opinião sincera sobre ela. O que gostou ou não.

Nenhum comentário:

Postar um comentário