segunda-feira, 6 de junho de 2016

Vampira Charlote - Parte IV (Final)



Algumas coisas tendem a se repetir.

Faltavam nove noites até meu casamento, quando Vlad fez o que fez. Peter foi massacrado e deixado em um estado muito além daquele em que um mortal sobreviveria, e eu fui sugada de forma violenta, até quase perder os sentidos, diante dos olhos tristes e impotentes do homem a quem eu já amava. Quando tudo terminou, juramos fugir juntos.

A verdade é que apaguei pouco após isso. Como ocorrera meses atrás, fui cuidada por Marjorie. Suas poções e unguentos ajudaram meu corpo a se restabelecer, e mais do que nunca, ela fez seu papel de vigia. Meu quarto não era mais meu: Marjorie dormia ao meu lado, uma garantia de que eu não tentaria nada, agora que os planos dela estavam tão perto de se concretizar. Também tinha Alice, que me trazia as refeições e me ajudava no banho, de modo que não tinha mais qualquer direito à privacidade. Disseram-me que o príncipe estava em reuniões importantes com as autoridades da capital e cidades vizinhas, e que retornaria na noite anterior ao casamento. A distância daquele homem era um alívio, por outro lado, a falta de informações sobre Peter era uma tortura. E assim se passaram seis noites.

Na sétima, algo de sobrenatural ocorreu.

— Você pode me ouvir? — Perguntava uma voz em meus sonhos. A voz de Peter, doce e suave. — Não há distância que me impeça de chegar a você, Charlote.

— O que ele te fez? — Perguntei em pensamento, temerosa da resposta.

— ...não importa. Esteja pronta amanhã, fugiremos enquanto o castelo dorme. — Um momento de silêncio. — Ou terá você desistido de arriscar tudo?

— Já lhe disse: para mim é fuga ou morte. — Falei eu, decidida. — Estou esperando por você.


Como deve se lembrar, parte do meu treinamento consistiu em dominar a arte das ervas. Marjorie era uma boa mestra, e eu uma ótima aluna. Pois bem, já há algum tempo eu guardara comigo algumas dessas substâncias e ingredientes, que surrupiei dos aposentos dela. A mistura certa no vinho colocaria qualquer pessoa para dormir profundamente em pouco tempo...e foi isso que fiz. Na primeira oportunidade que tive, despejei a substância no odre que compartilhávamos. Para não levantar suspeitas, bebi com elas como de costume, mas não antes de ingerir a erva certa para quebrar o efeito da mistura. Uma pessoa menos preparada seria pega, pois Marjorie era muito eficiente em perceber alterações suspeitas no sabor e deduzir o resto. Mas eu não era uma iniciante...sabia bem como disfarçar o gosto.

Eu exibia um sorriso de orelha a orelha quando as duas caíram em um sono pesado. As amarrei e amordacei na cama. Vesti o conjunto mais simples que encontrei, um vestido grosso e curto, dividido por uma cinta de couro, um casaco negro e botas, guardei numa bolsa joias e restos de nossa última refeição, e aguardei. Como um anjo negro ele entrou pela janela de meu quarto, ao que corri para abraçá-lo. Lágrimas molhavam meu rosto enquanto o apertava com força, com medo de deixá-lo ir. Ele me abraçava de volta, e permanecemos assim até que eu me acalmasse.

— Temi não vê-lo de novo. — Confessei.

— Te fiz uma promessa, não fiz? — Perguntou-me, apoiando seu rosto no meu. — E farei o que for preciso para cumpri-la.

Peter usava um capuz e capa cinzentos, por sobre um conjunto simples de algodão marrom. Uma cinta prendia sua espada a cintura, e uma alça sobre o tronco prendia seu mosquete. Calçava botas de couro, e tinha manchas de sangue tanto no canto da boca quanto nas mãos. Após olhar para as duas prisioneiras, sacou uma adaga das costas que estendeu a mim, perguntando:

— Você faz ou eu faço?

Olhei para Marjorie, a bruxa traidora. A mulher que me vendeu como a uma cabra, a mulher que encontrou uma garota inocente e ambiciosa e transformou no seu presente para o demônio. Parte de mim queria matá-la, mas a outra parte se perguntava se eu me perdoaria após fazer isso. Quanto a menina Alice...eu jamais seria capaz de lhe fazer mal, por mais que desconfiasse que ela não hesitaria em fazê-lo a mim, se assim fosse ordenada.

— Deixe-as viver. — Disse eu, segurando seu braço. — Só quero ir embora, não desejo ver mais sangue.

— A bruxa é perigosa, Charlote, sabe disso. O mal que ela lhe fez pede reparação. — Disse ele, me entregando a lâmina. — Para sermos livres, as vezes é necessário derramar o sangue de quem não queremos.

Vi algo em seus olhos quando ele disse isso. A tristeza de quem fez algo do qual não se orgulha. Mas eu estava decidida.

— Eu disse não.

Ele me olhou com ar de censura, mas então, se deu por vencido.

— Que assim seja, minha senhora.

Após me segurar firme as suas costas, saltamos por aquela janela. Achei engraçado como da mesma janela da qual saltei para a morte pouco tempo atrás, naquele momento eu saltava para a liberdade. Com um único movimento ele chegou até a torre mais próxima, vários metros abaixo. Se movendo pelas sombras e com a sagacidade de um gato, desviou de cada sentinela, pulando de um ponto a outro, até chegarmos as muralhas. Eu estava extasiada, apesar de tudo de ruim, ser um vampiro tinha lá suas vantagens práticas. Como Vlad me prometera, o poder estava lá. Do alto das muralhas, ainda que abaixados, podíamos ver a imensidão da Valáquia sob um céu estrelado, o brilho da lua me dando esperança. Eu sorri e o segurei com mais força, ao que ele iniciou a descida.

Seus movimentos não eram humanos, e em um instante estávamos em terra. A escuridão era nossa aliada, e sob o manto dela Peter andava comigo, sua visão de predador noturno permitindo que se movesse sem hesitação ou qualquer fonte de luz. Foram horas me carregando em passo rápido, até chegarmos as fazendas e Peter decidir invadir um estábulo. A partir dali seguimos sobre um belo e forte cavalo, rumo a um destino desconhecido. Após mais algumas horas de cavalgada por um terreno elevado e deserto, chegamos a uma velha cabana abandonada.

— O sol nascerá em poucas horas, e esse lugar é distante e desconhecido o suficiente para que não nos preocupemos com guardas antes de vários dias. Passaremos um ou dois dias aqui, enquanto analiso nossas opções.

Eu estava cansada da viagem, mas apesar disso, estava feliz. Era uma cabana velha, cheia de poeira e insetos, mas eu estava com Peter, estava livre...e isso por si só fazia dela um paraíso! Logo estávamos deitados sobre uma velha cama de palha, aninhados um nos braços do outro.

— Que lugar é esse, Peter? — Perguntei, curiosa. — Como sabia que estaria esperando por nós?

— Não sabia. Apenas conheço muito bem essas terras, e certos padrões. — Disse ele, me abraçando. — Por sorte não há moradores, ou teríamos que tomar certas decisões.

Ele era mesmo um monstro, mas um monstro que me amava. Um monstro que não faria o mal por sadismo...mas apenas o necessário para me proteger. Eu me ergui da cama, na semiescuridão, despindo aquelas roupas.

— O sol ainda não raiou, não é mesmo? — Perguntei, com voz maliciosa. — Temos tempo para terminar o que começamos aquela noite.

Ele me olhou com aqueles olhos, de um verde belo e intenso, como se bebesse de minha beleza.

— Que seja como a minha senhora ordena. — Respondeu, sorrindo.

Enfim demos vazão aos nossos desejos, tanto tempo reprimidos. Seus lábios macios passeavam pelo meu corpo, que se arrepiava em resposta. Nossas mãos dançavam pelo corpo um do outro, deslizando sobre cada curva, cada músculo, cada contorno de carne, suor e prazeres. Montando sobre ele, me movia com avidez, contorcendo-me nas sensações que experimentávamos naquela madrugada. Enfim éramos um do outro, corpo e alma! O que provei naquele momento era diferente de tudo que vivi com Vlad. Havia desejo em minha relação com o príncipe, mas um desejo misturado ao ódio, numa ambivalência de sentimentos. Com Peter havia desejo...mas também amor. Sem lugar para o ódio, eu podia saborear totalmente aquele momento, sem necessidade de arrependimento ou culpa. Podia ser plena, e aquilo era maravilhoso.

Dormi em seus braços, e só acordei várias horas depois. A maldição vampiresca o impeliu ao sono, uma força que só o libertou ao pôr do sol, como fazia com os demais de sua espécie. As provisões que eu trouxe do meu quarto eram suficientes apenas para uma primeira refeição, mas me mantiveram alimentada até que ele despertasse. Peter era um predador, de posse de suas lâminas ele caçava sem dificuldades pela região, sem necessidade de cavalos, falcões, cães, arco ou mosquete. E voltava mais rápido que qualquer homem faria com a ajuda de tudo aquilo que mencionei. Os animais que caçava tinham uma dupla função: me alimentar com sua carne, e alimentá-lo com seu sangue.

— Então dá pra viver disso? — Perguntei a ele, enquanto comia uma boa tira de carne assada na fogueira. — Vocês podem matar animais e beber seu sangue... não precisam de humanos.

Ele lavava as mãos sujas de sangue, com água de um odre que encheu num riacho próximo.

— Alguns tentam... mas poucos conseguem. — Disse-me ele, resignado. — Somos predadores de homens, Charlote. Animais impedem nossa morte, mas nos deixam cada dia mais fracos...cada dia menos “caçadores”. E um predador que falha em ser o que é, está condenado a sucumbir pelas garras de outro.

Então todos os vampiros eram assassinos, e aqueles que tentavam deixar de ser, acabavam virando eles mesmos a caça. E o Drácula era o predador supremo, e logo viria atrás de nós, com seu exército e sua força. Teríamos afinal, alguma chance? Eu poderia ter esperança de fugir com Peter, preservando minha vida, minha liberdade e humanidade, ou seria tudo um devaneio de uma boba apaixonada, condenada a se tornar a escrava vampira de um tirano?

Naquela noite nos deitamos novamente. Entregava meu corpo e meu sangue, pois para ele, eu queria dar tudo de mim, sem receios. Nenhum de nós admitia, mas no fundo sabíamos que precisávamos aproveitar cada noite como se fosse a única, pois tudo podia acabar em um instante. Peter rondava a área por onde seguiríamos, coletando informações e buscando suprimentos. Logo deixamos a cabana, e seguimos pelos caminhos que ele sabia serem menos prováveis de esbarrarmos com os homens de Vlad.

Embora meu amado fosse um estrategista experiente e conhecesse o terreno, tinha algumas desvantagens consideráveis em sua tentativa de fuga. A primeira era a quantidade de gente pelas cidades e estradas, tudo por conta do casamento, que foi oficialmente adiado. A segunda era nossa fama: ele era o principal homem do príncipe, conhecido por soldados e autoridades, e agora acusado de raptar sua prometida. Eu era a noiva real, e para além de minha aparência já conhecida, meus porte altivo traia minhas tentativas de parecer uma mulher comum. Mesmo sob mantos e capuzes, corríamos risco de ser reconhecidos. A terceira era sua condição de vampiro. Soldados humanos podiam marchar com poucas horas de sono, as vezes até mesmo sem dormir, quando pressionados. Enquanto isso, Peter tinha apenas do pôr do sol até o amanhecer para prosseguir com seus planos, e isso lhes dava uma vantagem de terreno difícil de ser igualada. A quarta e última... bem, era eu. Por minha causa, Peter tinha que procurar abrigos, quando sozinho poderia dormir sob o chão de terra. Por minha causa, tinha que caçar e fazer fogueiras, quando poderia apenas beber dos animais ou mesmo de algum incauto que caísse em seu caminho. Mas por mim ele poupava aqueles que não pouparia se estivesse só, condenando a nós dois ao destino que temíamos.

Refleti sobre isso durante os dias que se seguiram, até que avistei ao longe os soldados de Vlad, marchando em nossa direção. Passei horas ao lado do corpo inerte de Peter, com uma espada em mãos, pronta para protegê-lo, assim como a mim mesma. Foi com alívio que vi seus olhos se abrindo, novamente vivo, novamente pronto para lutar.

— Eu tenho vantagem, uma vez que a noite caiu sobre eles. — Me disse em pensamento, de cima de uma árvore velha. — Precisam confiar na luz de tochas, e o terreno irregular atrapalhará seus movimentos. É hora de matar meus velhos companheiros.

Aquelas palavras dele me doeram, pois sabia que doíam nele. Peter se sacrificava por mim, seu corpo, seus privilégios e seus ideais... eu devia me sacrificar por ele também. E foi ai que tomei minha decisão. Era tarde quando ele retornou, banhado pelo sangue de homens mortos, seus olhos carregando uma dor infinita. Correi até ele e o abracei, aliviada pelo seu retorno.

— Faça, Peter. — Disse eu, ainda abraçada a ele. — Me transforme em sua igual...me faça uma vampira.

— Está louca? — Questionou ele, se afastando. — Não vou condená-la a isso, Charlote, eu não poderia. Como posso tirá-la das mãos dele apenas para transformá-la em uma assassina como eu?

Com as mãos para trás eu lhe confrontava.

— Sabemos onde isso vai parar, Peter. Temos feito nosso melhor, e mesmo assim mal saímos da capital! Nos escondemos como ratos, e mesmo assim os homens dele chegaram ao nosso quintal. Se queremos ter uma chance, você sabe bem o que deve fazer.

— Não...não. — Ele lutava contra minha ideia, era gentil demais para me desejar isso. — Ele quer que você seja como ele, Charlote. Dará isso de bandeja ao monstro?

— Não, meu amor. O que ele quer é me transformar na vampira dele, jamais perdoará se for você a fazê-lo. Se for você, não só meu amante, mas também criador e mestre — Disse eu, revelando o pulso já cortado por minha adaga escondida. — E como não temos mais tempo, tiro de você o direito de escolha. 

Pude ver a raiva e frustração em sua face se traduzirem em um murro que rachou a velha parede de barro que revestia a casa em que estávamos, pouco antes da resignação tomar seu lugar.

— Eu ainda posso deixá-la morrer. Acredite, é melhor do que aquilo que a espera. — Ele resmungou, com as presas de fora.

Me deitei na cama com um sorriso no rosto, ignorando sua bravata e deixando meu pescoço a mostra.

— Faça, Peter. Me dê o poder que sempre busquei, me dê a chave para vivermos juntos pela eternidade.

Eu estava em seus braços enquanto meu sangue escorria pelo pulso. Ele segurava meu corpo com carinho, me dando um beijo doce pouco antes de cravar seus dentes sob minha pele. Eu segurava seus cabelos enquanto ele iniciava a tomada de minha vida... meu coração acelerado, sabendo que logo deixaria de bater. Apesar do medo, eu sabia que essa era minha cartada final, a garantia de que Vlad não teria o que queria. Que caso ele nos achasse, e era bem provável que fosse esse nosso destino, jamais teria o prazer de me fazer dele. Marjorie me disse que o vampiro criado está para sempre ligado a seu criador, com um forte vínculo que jamais se desfaz de fato, apenas se enfraquece. Ele saberia que eu seria sempre leal a Peter...sua única escolha seria minha morte. De uma ou outra forma, eu seria livre.

Ouvi o som de carne sendo atravessada, abrindo meus olhos no susto. Peter parara de sugar meu sangue, afastando sua face do meu pescoço, com olhos arregalados e sangue escorrendo dos lábios.

— Charlote... — Sussurrou, pouco antes de cair, revelando uma estaca encravada nas costas.

Das sombras tornou-se visível a figura de uma mulher. Seus longos cabelos castanho claros, soltos sobre a face. Suas roupas negras, apropriadas para o terreno, seu sorriso cínico me fazendo ficar sem ação enquanto a via se aproximar e beijar meu rosto.

— Meninas travessas, ficam sem brinquedos. — Disse ela, sentando ao meu lado.

Eu não conseguia pensar com clareza, enquanto via tudo desmoronar a minha frente. Lágrimas começavam a brotar dos meus olhos, quando notei que Peter ainda dava sinais de vida, se arrastando até meus pés.

— Peter... resista, por favor. — Supliquei, sussurrante.

— Eu posso entendê-la, Charlote querida. Eu também tive minhas aventuras, mas sei quando parar e assumir minhas responsabilidades. — Ela me dizia, acariciando meus cabelos. — Fique feliz, pois o Drácula ainda a deseja, apesar de seus muitos pecados.

Peter gritou de dor quando seu corpo foi preso ao chão pela espada de um homem saído do nada. Sua capa negra revelava uma couraça esculpida com perfeição: vermelho vivo, negro e detalhes dourados, que ostentavam no centro o símbolo do dragão, completando a imagem daquele homem saído dos pesadelos de milhares de homens. Seus olhos negros me fitavam como um lobo faminto diante da presa já abatida. Eu via seu ódio e desejo expressos naqueles lábios que se abriam e fechavam, enquanto ele se aproximava de mim.

— Deixe-nos, Marje. — Disse ele, sentando-se no lugar dela e pegando-me em seus braços. — Esse é nosso momento. Dela, meu ...e dele.

Vlad fez questão de me deixar virada na direção de Peter, do mesmo modo que fizera quando nos encontrou lutando. Peter que fazia um enorme esforço para se erguer com a estaca no peito e a espada no tronco, enquanto urrava de ódio. Eu sentia o hálito do monstro em meu pescoço, suas mãos duras e frias que me aproximavam de si, trêmulas. Como se lutasse contra si mesmo, sua vontade de me fazer em pedaços por minha traição. Eu estava fraca, assustada e abatida demais para lutar. Eu estava enfim derrotada, e começava a aceitar isso.

— Pensaram mesmo que poderiam fugir de mim? Hã!? Acreditaram realmente que viveriam saltitantes e felizes nos jardins do Éden? — Perguntava ele, lambendo meu pescoço e olhando para meu amado. — Não existe paraíso para onde fugir, crianças rebeldes, há apenas o inferno.

Dito isso, gritei de dor ao sentir meu pescoço ser mordido com violência. Ele me segurava com força, enquanto sugava meu sangue com uma fúria que eu nunca sentira antes! Minha vida me abandonava rápido, e meu coração diminuía a cada segundo sua capacidade de tocar sua música. Perdi minha consciência pedindo perdão para o homem que amava, o homem que derramava lágrimas de sangue. Quando, de alguma forma mística, minha consciência transcendeu meu corpo físico, e como um espírito eu contemplei o que se seguiu. Quando vi o Drácula sofrer.

De joelhos, Vlad cuspia sangue. Seus olhos assustados, seu corpo todo a tremer, o chão banhado pelo sangue que ele vomitava em meio a urros de dor!

Maldição! O que está... acontecendo? — Perguntou ele, para Marjorie.

Vi minha antiga mestra e amiga. E ela sorria.

— Lamento, Vlad III da Valáquia, Empalador...Drácula. — Zombava, Marjorie, enquanto feria o rosto dele com uma adaga. — Você enfim fez aquilo que eu queria. Enfim caiu para meu “Cavalo de Tróia”.

O...sangue dela... — Ele sussurrava, com dificuldade.

— Sim, sim, o sangue de Charlote é o segredo. Tão delicioso pra você, não é verdade? E quem poderia saber que seria venenoso para os da sua espécie? Que mesmo o “Demônio imortal”, bebendo dele continuamente, e por fim o sugando até o extremo da vida dela, no íntimo ritual que a transformaria, poderia morrer por tal sangue?

Marjorie gargalhava, bebendo do prazer que aquele momento lhe conferia.

— É, eu sabia. — Disse ela, antes de desferir outro corte na face do monstro.

Vlad tinha um aspecto demoníaco, sua face totalmente transformada pelo ódio. O sangue teimava em sair não só pela boca, mas pelos cortes que a bruxa lhe fizera. Após grande sacrífico Peter chegara ao meu corpo, corpo já inconsciente...ou morto, não saberia dizer. Rasgando o próprio pulso com os dentes, ele levou seu sangue a minha boca. Naquele momento minha visão se apagou novamente, me sentindo ser sugada de volta sob o canto das batidas de meu coração. E de alguma forma, eu bebi. Suguei seu sangue, como ele antes havia sugado o meu. Um beijo de vida e morte, que me traria de volta a esse mundo. Marjorie viu seu esforço final, e por algum motivo, decidiu ajudá-lo. Sussurrando palavras que emanavam um estranho poder, ela fez a estaca de madeira apodrecer, até virar pó.  

Sem a arma encravada no coração, meu amado estava livre para me guiar de volta.

— Beba, Charlote. — Dizia ele, em minha mente. — Beba minha vida, faça dela sua. Volte para mim...

Eu abri meus olhos, ofegante. Sentia o gosto do sangue em meus lábios...o sabor mais delicioso que já experimentara. Vi os olhos de Peter para mim, um misto de orgulho e pesar neles. E então vi sua mente. Sua dor, sua tragédia. Seu coração se abria para mim, e eu me enfiava dentro dele, com sede de conhecê-lo. Seu amor por mim era um raio de luz em meio aquelas densas trevas que o cercavam... a chama que o aquecia, e que iria consumi-lo.

— Você é ainda mais belo do que eu pensava. — Disse em sua mente, nós dois como um só. — É hora de darmos um fim a isso.

Eu me ergui daquela cama um novo ser. Sentia uma força e poder que nunca experimentara antes. E sede, eu sentia uma sede imensa. Vlad não morria, o maldito demônio estava de pé, deixando Marjorie receosa. E Peter sacou novamente sua espada, partindo em direção a ele! Quanto a minha antiga amiga, eu sentia seu medo, seu ódio e mágoa. Ela um dia se ofereceu a Vlad como a noiva ideal, mas ele a desprezou, e ela jamais esqueceu disso. Com a desculpa de encontrar o par ideal para o monstro, passou anos atrás da arma que poderia matá-lo. Seus poderes lhe guiando enfim até mim.

Parei diante dela, a surpresa em seus olhos ao me ver de pé, revelando o quão diferente eu deveria parecer.

— Entende agora, minha querida? — Perguntou-me, enquanto assistíamos a Peter atacando seu príncipe com tudo que tinha. — Está claro o motivo pelo qual era necessário chegarmos até esse ponto? Meus planos sempre exigiram que você fosse transformada, Charlote, mas jamais que partisse de vez desse mundo.

Marjorie colocou a adaga sobre uma velha mesa, e abaixou os braços, como um sinal de submissão. Eu caminhei até ela, mordendo o lábio, como uma garota confusa e frustrada.

— Apesar de tudo, nossa relação sempre significou algo para mim, Marjorie. — Disse eu.

— Eu reconheço a gravidade do que fiz, mas digo que não fiz mais que o necessário. Essa é a chance de recomeçarmos, o que me diz? — Perguntou-me ela.

— Lhe prometo que nós duas teremos nossa vingança. — Respondi.

Marjorie sorriu.

— Sim, “querida”, mas não da forma que imagina. — Disse eu, em sua mente.

E então encravei meus dentes em seu pescoço, sugando sua vida com vontade. Pude sentir suas tentativas de se livrar de meu abraço, totalmente inúteis diante da força que eu agora possuía. Pude sentir seu lamento, sua dor por morrer após tanto esforço. Pude ouvir seu coração batendo cada vez mais fraco, seu suor e lágrimas escorrendo...e enfim senti-la morrer em meus braços. Seu sangue, quente e saboroso, descendo por minha garganta, saciando uma fome de vida e vingança.

Eu era uma assassina, e me sentia bem com isso. Sequer sabia dizer se a matei por vingança ou apenas para saciar meu instinto de sangue.

Santo Deus, agora havia mesmo cruzado o portão final.

A coloquei no chão gentilmente, fechando seus olhos como um último ato de respeito. Eu tinha poder, e dado por Peter, não por Vlad. Mesmo que pequena, era uma vitória. Após encerrar minha história com minha antiga amiga e mestra, pude voltar a realidade. E nela, Vlad e Peter lutavam! Parte da cabana estava destruída no processo, e eles se encontravam do lado de fora. O Drácula levitava acima de mim, seu sangue jorrando pelos vários cortes feitos por Peter. Ele estava incrivelmente pálido e ofegante, enquanto apertava o pescoço do meu amado.

— Como...como pôde? — Perguntou ele, olhando para mim e Peter. — Como ousou fazer isso a ela? Ela era minha, seria minha pela eternidade!

Após expressar sua indignação por palavras, Vlad as expressou em violência. Mordendo o pescoço do meu amado e sugando seu sangue! Não, eu não poderia deixar aquilo acontecer, não poderia deixá-lo matar o homem que eu amava. Peguei a espada de Peter que estava caída e saltei em direção ao monstro! Com um movimento eu cortei o braço com que Vlad o segurava, separando os dois no processo. Nós três caímos, eu e Vlad de pé, Peter de joelhos. Tepes não gritou, apenas segurava o que restou do seu membro arrancado, por onde jorrava sangue abundantemente.

— ...aprendeu direitinho, criança. — Disse ele, para mim.

— Tive um bom mestre. — Respondi.

Ele caiu de joelhos, apoiando-se no braço que ainda restava enquanto suava sangue. Eu mantinha a espada erguida, protegendo a mim e ao homem que amava. Após algum tempo de sofrimento, o Empalador me mostrou seu sorriso sádico, dizendo:

— Uma pena que seu mestre irá comigo para o túmulo.

Dito isso, vi Peter como ele, vertendo sangue em abundância, pela boca e cortes feitos por seu inimigo. Sentia meu criador e amado sofrendo uma agonia mortal. Eu o abracei, olhando em seus olhos, belos e tristes. Chorando pela sua dor...dor que eu causei.

— Peter... eu lamento tanto... — Eu falava em seu coração, sentindo sua dor, sentindo o medo que ele sentia por mim, pelo meu futuro sem ele. — Se soubesse da natureza do meu sangue, jamais o ofereceria a você.

Ele me olhava com ternura, encostando seu rosto no meu.

— Não há lugar aqui para arrependimentos. — isse ele, segurando minha mão e então beijando meus lábios. — Agora vá, termine o que começamos, destrua nosso vínculo com o monstro.

Peter fechou então seus olhos... para sempre. A dor que senti era imensa, e lágrimas rubras manchavam minha face. Eu me ergui, segurando a espada de Peter em minhas mãos. Quando humana, ela parecia pesada...agora era leve como uma espada de madeira. Vlad gargalhava, ainda que com dificuldade. Zombava da minha perda, dos sacrifícios que fizemos para chegar ali. Aquilo não era perdoável.

— Acha que com minha morte estará livre, Charlote Berthory? — Ele perguntava. Despojado de toda sua imponência e poder, parecia um homem doente. — Acha que meus servos fiéis deixarão você livre? Pouparão sua família?

Eu encostava a espada em seu pescoço enquanto ele tremia, meus olhos frios e cheios de dor.

— O que eu sei, é que o reinado de Vlad Tepes termina hoje. — Disse eu, arrancando a cabeça do monstro de sobre os ombros.

Lá estava eu, cercada pelos cadáveres da minha antiga amiga, mestra e primeira vítima. Do corpo do homem a quem eu amei, meu salvador, criador e amante. E por fim, do tirano que me escravizou. Do monstro que destruiu tantas vidas, daquele a quem eu desejei e odiei, e por fim, ceifei a vida. Lá estava eu...sozinha. Enterrei Peter, meu último ato de amor. Não ali, onde outros poderiam profanar seu túmulo, mas em um lugar isolado e belo, distante daquilo tudo. Bebendo o sangue de soldados eu cheguei até os limites do reino, e com o dinheiro e poder que obtive, dei adeus a Valáquia. 

Voltei a Inglaterra, onde meu primeiro passo foi procurar minha tia. Titia Matilda estava acamada, aquela mulher antes tão forte, estava frágil e debilitada. Seu coração se alegrou ao me ver, tão triste que ficara ao pensar que eu morrera. Fiquei sabendo que o antigo casarão de Marjorie pegou fogo na noite em que deixamos a cidade de York, e como souberam que ela partiu ao lado de um homem estrangeiro, concluíram que o incêndio foi proposital. Lá morreram seu marido doente e outros empregados, e muitos acreditaram que eu estava entre as vítimas. Minha família na Irlanda recebera essas notícias, e após alguns meses realizaram um funeral simbólico. Minha partida trouxe dor a todos, e eu temia que minha volta fizesse ainda pior.

Enviei uma carta aos meus pais amados, com mentiras minimamente aceitáveis, tendo como realidade apenas ter sido levada e mantida a força, e minha saudade deles. Prometi visitá-los assim que minha tia melhorasse...embora eu sabia que isso era um sonho infantil. Titia faleceu um mês após meu retorno, tempo em que me esforcei bastante para esconder meus motivos para nunca sair ao sol e só estar disponível a noite. Eu bebia o sangue de animais pequenos, apenas o suficiente para me manter disposta e não levantar suspeitas. Quando Matilda se foi, suas posses foram dadas a mim como herança. Muitos deviam me ver como a garota oportunista que fugiu para viver aventuras e só voltou quando soube que a tia velha estava para bater as botas. Como eu podia ler suas mentes, era fácil comprovar isso. Tentei contribuir generosamente com a caridade como forma de diminuir essas acusações.

Duas semanas após a morte de minha querida tia, tempo que levei para colocar tudo em ordem, parti rumo a Irlanda, para visitar minha família. Faziam cerca de quatro anos que não abraçava meus pais, e isso me angustiava. Sentia saudades do cheiro deles, do seu calor, seu carinho...até mesmo de suas broncas. Sabia que não seria fácil enganá-los sobre minhas novas limitações, e passei toda a viagem pensando em desculpas convincentes sobre isso. Quando cheguei em terra, já as tinha em quantidade razoável.

E ai minha dor só aumentou.

Eles estavam mortos, e isso fazia uma semana. Foram encontrados na mesa de jantar, sem uma gota de sangue em seus corpos. Obra de demônios, o padre repetiu em seu sermão no funeral daquele casal de cristãos devotos, segundo me disseram. Passei toda a noite chorando diante de seus túmulos. Com o peso de suas mortes nas costas e sem mais ninguém no mundo, voltei para a Inglaterra. Coloquei uma mulher confiável à frente dos negócios de minha tia, agora meus negócios. Se fora uma dama que construíra aquilo, nada mais justo que outra levá-lo a frente. Passei a ficar nas sombras, administrando a distância, e constantemente em viagens. Quando se permanece para sempre com a face de vinte e um anos, ficar por muito tempo no mesmo lugar não é uma escolha.

Me comunicava por cartas, raramente marcando algum encontro, momentos esses em que tomava todas as precauções e truques para que minha escolhida não suspeitasse de nada. Repeti a fórmula pelas décadas seguintes, sob outros nomes, de filhas e netas de Charlote Berthory. Passava longos períodos bebendo o sangue de animais indefesos, e outros tantos bebendo sangue humano. Não foram poucos aqueles que matei, fosse pela urgência, fosse por serem uma ameaça. Sim, muitos inocentes morreram por minhas mãos, e acredite, eu lembro de todos. Carrego a dor deles comigo...dor que pouco a pouco foi me consumindo.

Se passaram cento e cinzenta anos, até eu desistir de tudo. Uma noite me deitei sob a terra abaixo de minha casa...e simplesmente dormi. Sem qualquer motivação para acordar, permaneci assim pelo século seguinte. Quando despertei novamente, o mundo havia mudado bastante. Era 1920, e eu não tinha mais nada. Acredito que o desafio de conquistar coisas de novo, foi parte do que me fez voltar a sentir alegria em abrir os olhos. Também passei a me esforçar mais para agir dignamente, procurando matar apenas quem merece morrer... geralmente o tipo de gente que é maioria no mundo. E após cerca de duzentos e cinquenta anos desde que Marjorie se revelou uma traidora, eu voltaria a ter uma amiga.

Seu nome era Carmila, uma vampira como eu. Ela aparentava ter por volta de trinta anos, sendo mais alta que a média, de pele muito branca e cabelos e olhos muito negros. Vestia-se sempre de modo recatado e com cores opacas, com o cabelo em um coque de época, e roupas que contrastavam com o período em que vivia. Sim, estávamos no início do século XX, e ela ainda se vestia como alguém do século XIX. E bem, esse contraste permanece até hoje. A diferença é que agora no século XXI, ela se veste como alguém do início do século XX.      

— Me visto como eu decidir me vestir, e me sentir bem...e só. — Falava ela, ou melhor, dizia em minha mente, pois coincidentemente, nossos dons eram semelhantes, e ela não parecia gostar muito de falar. Aliás, não parecia gostar muito de nada em geral, exceto do sangue do pobre animalzinho o qual ela quebrava o pescoço antes de derramar seu sangue dentro de uma taça vazia. — Se alguém me aborrece ou desconfia demais, ele vira meu jantar....ou eu mudo sua mente. Dependendo de meu humor... na noite.

Apesar da rispidez, era raro que Carmila matasse. Minha nova amiga era poderosa, com um dom de vasculhar e dominar mentes mais fracas. Por outro lado, era tão frágil fisicamente quanto uma vampira poderia ser, o que fazia um contraste interessante. Ajudávamos uma a outra, e continuamos assim até hoje.

— Um dia farei você evoluir, minha amiga. — Dizia eu, e ainda digo. — Farei vestir roupas da moda, trocar essa vitrola por um rádio potente e abandonar essa tv preto-e-branco por uma led tela grande. Quem sabe até, arrumar um namorado.

Carmila apenas me encara quando digo isso, cética sobre minhas palavras. Mas eu não perco totalmente as esperanças...e isso é parte do que me motiva hoje em dia.

Eu sou Charlote Berthory, atualmente dividindo um casarão com minha amiga numa área isolada de York, cidade na qual leciono História, numa universidade. Ainda sofro por Peter...meu grande e único amor. Sofro pela traição de Marjorie, minha antiga amiga e mestra. Sofro pelo que vivi com Vlad, o demônio que roubou minha virgindade, escolhas e humanidade. Sofro por minha família que sofreu por minha causa. E sofro por meus erros...e não foram poucos.

Não sei o que o destino me trará, ou por quanto tempo poderei manter essa vida, antes de ter que recomeçar do zero. Não sei se minha amiga apática logo se entregará ao sono dos mortos como eu mesma fiz, ou se eu mesma voltarei a fazê-lo um dia. Mas de uma coisa eu estou certa: eu estou livre, e sou dona do meu destino.


E isso... é uma vitória que ninguém pode me tirar.

2 comentários:

  1. Gostei muito...prendeu minha atenção e fez querer ler sempre o outro capítulo... parabéns pela criatividade, pois mesmo sendo uma história de vampiros não dá para associar a outras histórias...fico aguardando os próximos textos rs

    ResponderExcluir
  2. Que bom que gostou, Emília. Em breve eu posto o primeiro capítulo da nova história, com outro personagem mas com uma pegada parecida. Abraços.

    ResponderExcluir