Em
uma noite pacata e fria na cidade de Bleak Hill, um jovem vestindo de casaco
com capuz e usando uma mochila caminha pelas ruas, observando o fluxo de
pessoas que se dirige para a missa. A grande maioria de carro, embora uma ou
outra de bicicleta ou mesmo a pé.
Sabia que nessa cidadezinha o povo
adorava uma igreja, pensa o garoto, caipiras tem mais medo de demônio que de
gente.
A
maioria das casas é grande e com quintais ainda maiores, e após rodar por mais
de meia-hora ele chega diante da casa que queria: “Winnicott”, é o sobrenome na
caixa do correio, e o carro que viu saindo o faz imaginar que a casa está vazia.
Depois de se assegurar de ninguém estar olhando, o jovem pula a cerca de
madeira, se esgueirando pelo quintal do casarão de dois andares.
Tão fácil que dá sono, pensa, Andy
Valentine.
Nenhum
barulho, se há algum cachorro não apareceu ainda. Portas e janelas trancadas
(como ele já imaginava), não seria difícil destrancar, mas invadir a janela de
cima já aberta é mais seguro. Um, dois, em três movimentos o garoto chega na
janela, rápido e furtivo, um ladrão profissional. Lá dentro, um quarto típico
de garota: cama bagunçada, criado-mudo, guarda roupas de seis portas, bichos de
pelúcia e mesinha com computador. O único diferencial fica por conta de uma
pilha de livros de Psicologia e uma gata peluda, dormindo em cima da cama.
Abrindo
o guarda roupas: perfumes, maquiagem, fotos, cds, dvds e... roupas. Já sem
esperanças ele abre a última porta do móvel, lá dentro reluz um crucifixo muito
bonito, que ele sabe que renderia um bom dinheiro. Mas Andy não deseja roubar
objetos, algo valioso assim chamaria atenção desnecessária, prefere dinheiro
vivo. Ao fechar o guarda roupas, encontra uma gata toda arrepiada olhando e
silvando para ele.
— Eu
não gosto de você, você não gosta de mim, cada um fica na sua, valeu? — ele
fala, olhos semicerrados ao encarar a criatura.
Quando
pensa em tentar a sorte em outro cômodo, som de passos vindos de fora do quarto
o fazem mudar de ideia. Em cinco segundos a porta do quarto é aberta, ao mesmo
tempo em que o garoto se esconde embaixo da cama.
Já
dentro do quarto, uma jovem de camisola e sandálias de pantufas caminha
lentamente em direção à mesa do computador, ao lado da cama onde uma gata mia
freneticamente, como se quisesse denunciar o invasor.
— Surtou,
Fiona? — Pergunta Claire, enquanto afaga o pescoço da amiga com pelos. — Desse
jeito vou te encher de Rivotril, hein!
Ela
liga o computador e entra na internet, acessando uma dezena de páginas enquanto
fala com uma amiga via Skype. Totalmente inocente sobre o intruso tão perto de
si.
Casa de rico e nenhum centavo, e agora
isso. A merda da gata me deu azar.
Ele
lamenta, enquanto tenta pensar em um plano para sair de lá sem ser visto. Para
seu azar, o animal desce da cama e deita em sua frente, miando com olhos
acusadores. Do ponto em que se encontra, ele consegue discernir as curvas da
bela loira, o que quase torna a situação agradável, principalmente se ela
resolvesse despir-se.
—
...meu pai disse que o senhor Freemam tá super preocupado, que o Barry é meio
maluco, mas nunca sumiu assim, sem dar notícias por mais de uma semana. — Fala
Claire, para a amiga do outro lado da tela.
— Ele
deve tá por ai, de piranhagem. — Fala Evelyn. — Não é como se tivesse sido
comido por um bicho, ou coisa assim.
Elas
riem, só que Evelyn com um sarcasmo que a loira não teria como discernir,
inocente da participação da amiga na morte do ruivo. Andy também não sabe sobre
isso, mas essas palavras o levam de volta aquela noite sombria... o som alto da
gata silvando para ele o traz de volta, mas agora com um resquício da sua natureza
animalesca. Ele encara o felino com olhos de um animal selvagem, fazendo a gata
se arrepiar e sair correndo pela porta entreaberta.
— Que
foi isso, menina!? — Pergunta Claire, assustada e indo atrás do animal.
O
garoto percebe que essa é sua chance, e começa a sair furtivamente de seu
esconderijo. De capuz ainda no rosto e rápido como um gato, ele se esgueira até
a janela, e de lá passa para o lado de fora. A janela do Skype não foi fechada,
e Evelyn continua lá, só que distraída. Por um instante ela olha para a direção
dele, mas isso bem no momento em que ele passa pela janela...deixando apenas um
vulto cinza por meio segundo na tela.
Enquanto
a garota encara mais atentamente a imagem do quarto da amiga, a vê retornando
para o assento em frente a ela, com uma gata assustada no colo.
— Que
foi garota, tá com uma cara estranha, aconteceu alguma coisa?
—
Nem... acho que sua gata viu fantasma, hein. — responde a jovem de lábios
grossos e olhos amendoados. — Melhor você ir pra missa enquanto pode, hein
amiga.
Elas
riem novamente, só que uma delas novamente não tem um sorriso sincero.
Quando
essas palavras são ditas, o garoto já está fora do terreno dos Winnicott, para
nunca mais voltar lá.
Casa de rico, nenhum centavo e quase sou
pego. Pelo jeito a gata me deu mesmo azar, pensa ele. A merda dessa semana tá
cada vez pior!
[...]
Cinco
dias atrás, início da semana.
Depois
de uma pequena maratona, Andy chega na escola para seu primeiro dia de aula,
após faltar por vários dias. A corrida o anima um pouco, esforço físico sempre
foi bom para fazê-lo deixar de pensar nos problemas. Todo suado ele chega na
sala, tendo como único desejo desviar do olhar da professora, o que obviamente
não acontece.
— Ei,
ei, garoto! Venha aqui na frente e se apresente como se deve! — Grita a
professora, uma senhora magricela, de nariz pontudo e cabelos brancos em coque,
já com seus sessenta e tantos anos.
Ele
se vira calmamente em direção a ela, ciente das dezenas de olhos e risos que o
seguem.
— Andy
Valentine, tia. — Ele fala, enquanto estuda a cara dos seus colegas de classe.
Patricinhas, valentões, esportistas, CDFs, tem de tudo ali, os mesmos grupos
que encontrou nas escolas por onde passou. Grupos com os quais nunca conseguiu
se enturmar. Mas no fim da sala, um rosto conhecido: Mandy Duncan, a irmã do
mecânico, olhando para o lado e com um sorriso de zombaria na face.
— Nada
de tia! Sou sua professora e exijo ser tratada com o respeito devido. — Reclama
a mulher, enquanto bate com o apagador na mesa repetidamente. — É senhora
Margaret! Não sei se de onde você veio é normal chamar a professora como
parente, mas aqui em Bleak Hill exigimos um linguajar apropriado.
Andy
pensa em como seria o barulho da cabeça da professora batendo na mesa, enquanto
encontra um lugar para sentar que seja ao seu gosto: na última fileira, como de
costume. Ele fica no lado oposto da garota, embora também no fim da sala.
Duas
horas depois, os alunos levantam e saem da sala, não sem antes olhar para o
forasteiro, entre risos e caras feias ele percebe que é o assunto da vez. Vez ou
outra ele olha para a garota que fingi ignorá-lo.
— Espero
que suas faltas e o atraso de hoje sejam exceções, e não regras, senhor
Valentine. — Comenta a professora, enquanto apaga o quadro com a matéria que o
garoto não entendeu.
Andy
ignora o comentário e vai embora, no caminho de volta, encontrando a dona da
casa em que tem se hospedado, à sua espera.
— Diz
ai Scooby, como é ser o centro das atenções na turma? — Pergunta Mandy Duncan,
uniforme escolar e adereços de rock.
— Quer
dizer que agora a Hello Kity tá me vendo? Achei que tava cega. — Ele responde,
acelerando o passo e mudando a direção.
Ela
aumenta o ritmo para acompanhá-lo.
—
Você tá dormindo na minha casa, não imaginei que também tivesse na mesma turma
que eu. A cidade é pequena, cara, se a gente for visto juntos toda hora, daqui
a pouco vão começar a falar bobagem.
—
Dane-se, garota! Tenho mais o que fazer que ficar de mimimi com a lobgirl da
cidade. Fui!
Ela
desiste de acompanhá-lo, ao notar que ele vai mesmo pegar outro caminho que não
o seu.
— Vê
se não some, você já tem dado muito trabalho pra o Jimmy, vê se não faz ele ter
de caçar você também.
[...]
Seis
dias atrás, casa dos mecânicos.
Um
porão fedorento em uma noite de lua cheia. Um monstro grande, forma de lobo,
com garras afiadas, pelos brancos e olhos vermelhos, urra de raiva para um
homem parado à sua frente. Apenas uma coleira de metal feita com correntes
muito grossas impede a criatura de destroçar o homem.
— É
sério, Andy, a terceira noite de treinamento e tu não consegue ainda nem
raciocinar que não deve me matar? — pergunta Jimmy Duncan, mecânico
profissional e lobisomem nas horas vagas.
A
única resposta do monstro é morder e puxar a corrente, quebrando dentes e
fazendo a gengiva sangrar. Jimmy então tira a roupa e começa ele mesmo a virar
um monstro. Músculos e pelos, garras e rabo, dentes e focinho, em poucos
instantes, o porão se torna palco de dois lobisomens imponentes e assustadores.
Jimmy, maior que seu alvo, salta sobre ele e segura sua cara com as poderosas
patas que adquiriu, mantendo o olhar da fera no seu próprio.
— Você
é Andy Valentine! — Fala Jimmy, olhos nos olhos. — Lembre-se de quem você é! Lembre-se de quem você é!
Uma
mordida quase arranca o antebraço do mecânico, sangue escorrendo pelas presas
do monstro que não consegue voltar a si.
Atrás
do Jimmy, agora afastado e ajoelhado enquanto aguenta a dor do ferimento que
sabe que vai se curar, surge uma garota de calça larga e casaco. Ela observa a
cena, enquanto bebe chocolate quente, e diz:
— Assustador
né? Acho que ele vai te dar muito trabalho ainda, maninho.
— Quieta,
Mandy! — Jimmy urra entre dentes, suportando com dignidade a dor e olhando para
o monstro que continua a se ferir ao tentar rebentar a corrente. — Ele tem
raiva de mais dentro dele, e raiva é justamente o que alimenta o monstro dentro
de nós.
— Enquanto
o garoto não aprender a dominar essa raiva, ao invés de se deixar levar por
ela, ele vai ser só um animal.
— E
se ele não for bom nisso? — pergunta, Mandy, mesma expressão de desinteresse.
— Ele
vai embora... ou morre. Não quero um
cachorro louco na nossa cidade.
E os
dois irmãos olham para o lobo, que uiva para a lua acima do porão.
[...]
Noite
atual.
São
21h00, horário sem grande movimento no bar e lanchonete “Bleak Beer”. Com um
balcão de bebidas, dez mesas espalhadas, duas atendentes servindo, um cozinheiro
e dois clientes, o dono do estabelecimento seca copos enquanto ouve o
noticiário da tv:
“— ...
e as buscas pelo estudante Barry Freeman prosseguem por mais um dia, sem
maiores resultados. Oficialmente, a polícia acredita que o jovem não tenha
saído da cidade, embora não tenha muitas pistas. Os sons de uivos muito
próximos que foram relatados por moradores fortalecem a hipótese do jovem ter
sido vitimado por lobos, o que justificaria as buscas pela área verde.” — diz o
repórter do telejornal, e continua:
“—
Extraoficialmente, boatos fazem menção ao misterioso dono do castelo no alto da
colina, conhecido como Adam Tepes. É comum ouvirmos pessoas o chamando de
“Conde Drácula”, tentamos contato com o mesmo, porém sem sucesso. Como ele
chegou a cidade a poucas semanas, é normal que parte da população fantasie um envolvimento
da sua figura com o desaparecimento. Já uma outra linha de investigação...”
Sozinho em uma mesa, encontramos Andy
Valentine tomando uma sopa aguada. O pouco dinheiro que conseguiu invadindo a
casa de um velho bêbado, exige economia, e a solução foi pagar a refeição mais
barata do lugar. Quando estava terminado de comer, uma jovem atendente para à
sua frente e coloca uma porção grande de carne com batatas coradas, na mesa. O
garoto olha na direção dela com cara de interrogação, ao que ela responde, com
cara de peixe morto:
— O
prato é cortesia do chefe.
Escorado
no balcão está um homem aparentado cinquenta anos, cabelos curtos e barba por
fazer. Ele mostra um sorriso enquanto fala:
— Essa
ai é a especialidade do bar, não quero que você saia daqui com má impressão da
nossa comida. Se você fosse maior de idade, te mostrava os drinques também, mas
daí, não quero problemas com a polícia.
— Nem
eu, valeu ai vô. — responde o garoto.
Trevor
parecia querer perguntar alguma outra coisa, mas sua expressão muda quando vê
um grupo entrando no bar. São dois homens e uma mulher: o primeiro é um sujeito
alto e musculoso, na faixa dos trinta, olhos e cabelos escuros, cabeleira
grande, jaqueta de couro aberta e sem camisa por baixo. Calça de couro e botas,
parecendo um vocalista de metal. No braço esquerdo, ele exibe uma grande
tatuagem, com símbolos de jogos de azar, com dados e cartas. Ele anda agarrado a uma jovem bonita, por
volta dos vinte, negra e de cabelos volumosos, belas curvas, calça de couro,
botas e blusa com decote. Os dois riem bastante.
O
terceiro deve ter uns vinte cinco, usa um casaco largo, é magro e de cabeça
raspada. Usa calça jeans preta e tênis, com uma coleção de piercings entre
nariz, língua, boca, orelha e sobrancelhas, combinada a uma cara de poucos
amigos. Andy percebe que as garçonetes arrumam algo para fazer na cozinha assim
que eles chegam, e o próprio dono do bar que vai até eles. O único outro
cliente deixa o lanche pela metade com o pagamento na mesa, saindo como quem
não quer nada.
Os
três conversam entre si enquanto Trevor anota o pedido, fingindo bom humor para
o maior deles, enquanto o menor examina tudo em volta, detendo o olhar em Andy,
que para evitar confusão se concentra na batata. O casal se beija de forma
intensa, ela no colo dele, trocando carícias de modo lascivo. O outro tira os
olhos de cima do Andy e começa a resmungar algo para os dois enquanto Trevor
volta com as bebidas.
— Porra
meu chapa, tem algum motivo pra aquelas quengas que trabalham pra você ficarem
se escondendo na cozinha? — pergunta o cabeludo alto. — Que eu saiba, meus manos
e eu sempre deixamos uma boa duma grana nesse teu barzinho cheirando a bosta!
Trevor
mantém o sorriso enquanto volta da cozinha, após entregar o pedido, diz:
— Você
sabe da merda que aquele amigo de vocês grandão fez aqui da última vez, né
Malcon? Do soco que ele deu em uma das minha garotas. Elas ficaram assustadas,
sem falar no rolo de vocês com a
polícia.
— Um
bando de putinhas assustadas. — ri a garota.
E o
tal Malcon cai na gargalhada, dando tapinhas nas costas do Trevor, e então diz:
— Que
se fodam tuas vadias, eu quero saber é da comida mesmo. Me traz o prato de
sempre rápido e a gente esquece isso, parceiro.
Minutos
depois, Andy termina a refeição e vai até o balcão pagar pelo que tinha pedido antes.
Trevor recebe, e quando o garoto está a poucos passos da saída, sente uma mão
segurando seu braço. Ele se vira e dá de cara com Malcon, ainda sentado na
cadeira.
— Qual
é a sua? — O garoto pergunta, puxando o braço e percebendo que quem o segura é
mais forte que ele.
— Não...
qual é a sua? Tu acha mesmo que eu
não ia perceber quem é você, garoto? — Malcon torce o braço do Andy e sussurra.
— Que eu não ia sentir seu cheiro de
cachorro encardido?
—
Engraçado, eu podia jurar que já vi ele antes. — Diz a garota que o acompanha,
chamada Evelyn.
Trevor
se aproxima da mesa e tenta acalmar o grupo:
— O
que tá pegando, Malcon? O garoto não quer confusão, ninguém aqui quer. Deixe
ele ir e eu deixo vocês beberem até cair, por minha conta, hã?
— Esquece
a bebida grátis, parceiro. — Malcon diz, enquanto se levanta e os outros
repetem o gesto. — Aliás, esquece a comida também. Jeff, acerta ai a bebida que
a gente pediu com nosso camarada, traz as garrafas e vamos nessa.
Nesse
momento, Andy consegue desprender o braço, encara o Malcon e fala:
— Não
sei do que você tá falando cara, mas eu não curto ninguém me segurando ou dando
ordem!
Malcon
apenas o encara, olhar de desprezo na face. Nesse instante, o garoto sente a garota
o abraçando por traz, e um cano de arma pressionando sua costela.
— Desculpa
gatinho, mas quando o macho alfa rosna, os lobinhos obedecem. — Evelyn sussurra
no ouvido dele, com uma pistola dando ênfase a frase.
O
garoto permanece com ares de desafio para o grupo, que apenas ri da cara dele
em resposta. Quando saem do bar, sob o olhar impotente do dono, Andy vê o
Malcon se dirigindo até uma caminhonete, e então dizendo:
— Seguinte,
parceirinho. Tu vem com a gente quietinho, ou vamos ter que levar teu cadáver?
Ele o
encara com raiva, e então responde:
— Vão
pra o inferno!
Malcon
faz um gesto para alguém atrás do garoto e da Evelyn, e o jovem sente uma forte
dor na nuca. Tudo fica escuro e distante, enquanto Andy Valentine é levado até
o covil da alcateia.
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