Castelo
Tepes, trezentos anos atrás.
Uma
noite fria e de densas nuvens paira sobre a fortaleza. Do alto da sacada de seu
quarto, o casal olha para o céu, como se dele esperasse respostas.
— Uma
tempestade está para cair sobre esse lugar. — diz Marie Winnicott, para o jovem
ao seu lado — Você teme por nós?
— Crê
que o herdeiro do Drácula teria algo para temer, que não fosse perdê-la? — diz
ele, segurando em suas mãos delicadas.
Ela
beija as mãos do amado com ternura, apoiando-se então no peito dele, como quem
busca segurança e paz, diante do caos iminente. Ele a abraça forte em resposta,
seus olhos refletindo amargura.
—
Viemos tão longe, adquirimos esse castelo no lugar mais isolado que pudemos
encontrar, com poucos empregados, poucos conhecidos, tudo para manter os
malditos longe de nós! Tudo para preservar um pouco de paz!
— Infelizmente,
meu amor, desde que seu pai fez o que fez, a Ordem do Dragão se aperfeiçoou em
encontrar e eliminar ameaças. Ficaram realmente muito bons em queimar seus
monstros e bruxas, em nome de Deus.
O
vampiro se afasta dela, apoiando-se na grade da sacada, o peso do mundo nos
ombros.
— Eu
sabia que era apenas questão de tempo até nos encontrarem, só pensei que
teríamos mais tempo: quem sabe dez ou quinze anos de paz antes que seu fogo
queimasse nosso paraíso.
Ela o
abraça por trás, ciente que ele não quer que suas lágrimas rubras sejam vistas.
— Meu
senhor, meu amado, o Gênesis já nos ensina que o paraíso não foi feito para
durar. Adam, você que tem o nome do primeiro dos homens, mais do que ninguém
deveria saber disso.
Ao
longe, tornam-se visíveis as dezenas de tochas brilhando na escuridão,
marchando lenta e inexoravelmente rumo a fortaleza.
—
Eles vem para consumir no fogo nosso paraíso. — diz o vampiro, com íris
vermelha e presas de fora — Pois eu lhes mostrarei o inferno.
[...]
O
mundo se transforma em fogo e sangue, com dezenas e dezenas de corpos tombados
pelas mãos do morto-vivo. Suas roupas estão pintadas com o sangue de muitos,
incluindo o dele próprio. Com virotes de bestas encravadas nas costas, seu
corpo exibe uma coleção de ferimentos que teriam levado qualquer humano a morte:
tiros, cortes, queimaduras...
Ele
perdeu qualquer noção de tempo, sabe apenas que já há um bom tempo a chuva cai sobre
eles. Sente o cheiro de fumaça e o gosto de sangue, assim como uma dor terrível
por todo seu corpo. Então, um som ensurdecedor anuncia o disparo da arma, com
ele sendo atingido por um tiro de mosquete no ombro. O vampiro cai, a dor o
convidando ao sono eterno, a desistir e conformar-se.
Não, ele diz a si mesmo.
Apoiando-se
na espada para erguer-se, como sabe que deve fazer, já sem forças, decide ceder
aos instintos obscuros, deixando-se dominar pelo monstro. O frenesi assassino é
capaz de torná-lo mais predador que humano, porém mais forte. Com olhos de um
animal selvagem, ele desvia dos tiros de seus algozes enquanto diminui a
distância entre eles. O pescoço do primeiro é rasgado em um piscar de olhos,
por presas afiadas e mortais. O segundo mal tem tempo de compreender o que
ocorreu quando tem os braços decepados por um rápido golpe de espada, seu grito
de horror apenas complementando o absurdo da cena para o terceiro, um velho e
trêmulo homem, segurando uma arma de fogo. O vampiro faz questão de mantê-lo
vivo enquanto suga seu sangue com avidez, o líquido vermelho tornando-o capaz
de prosseguir.
Como
um anjo da morte ele passeia pelo campo de batalha, ceifando a vida daqueles
que encontra pelo caminho até o castelo. A dor de contemplar seu paraíso
transformado em chamas o traz de volta a consciência, e ele apoia-se na espada,
assim como na esperança de encontrar sua esposa ainda viva.
—
...queimando — uma voz embargada, vinda de um jovem caído e agonizante — Seu
reino satânico agora queima, demônio.
O
vampiro baixa os olhos para observá-lo e vê que não passa de um garoto, talvez com
quinze anos, sangue escorrendo abundantemente do local onde antes havia uma
perna.
Quando é que a fé se transforma em
fanatismo?, pergunta-se, quando é que a mensagem de amor e perdão se transforma
em ódio e intolerância?
— Eu...eu cumpri minha missão, você vai
queimar, junto dos seus servos malignos e da prostitu... — em um movimento rápido
a cabeça é separada do corpo, calando a voz que tenta difamar a mulher mais
gentil e fascinante que o guerreiro conheceu em sua existência.
Ele
se arrasta então em direção aquela que ama, sem saber que esse será seu último
encontro. A despedida de um amor que renascerá em outro tempo e lugar.
[...]
Adam...
Ele
está novamente na sacada do quarto, de onde à trezentos anos vislumbrou a
chegada dos inquisidores. Naquele tempo, lado a lado com a mulher que amava,
hoje sozinho, como talvez tenha de passar a eternidade, se quiser proteger
aquela que ama. De lá pode contemplar a tênue fumaça que ainda se ergue, os
restos do fogo que consumiram a madre.
Outra noite de chuva, e outra vez a Ordem
do Dragão chega até as portas da minha casa.
Adam segura nas mãos o cordão em forma de
cruz, enquanto olha para a direção onde sabe ficar a casa da Claire.
Não posso arriscá-la de novo, meu amor. Talvez
seja melhor que você sofra por um engano, mas permaneça viva, do que seja feliz
por um instante, apenas para nos despedirmos para sempre.
[...]
Claire...
Deitada
em sua cama, o quarto com as cortinas fechadas e ao som de Love Is A Losing Game (Amy
Winehouse), a jovem Winnicott permanece com as mesmas roupas da noite
anterior, assim como a mesma maquiagem borrada de choro. As batidas na porta
começam a ficar cada vez mais altas e frequentes, assim como o toque do celular
e a voz da garota do lado de fora do quarto.
—
...cansei, Claire, não vim aqui de baixo de chuva pra dondoca não me atender. —
Reclama Evelyn.
A
loira permanece olhando para o teto e calada, enquanto uma gata gorda se deita
sobre suas pernas.
—
Será que terei de mostrar para o seu papi
as fotos daquela festa? Sabe que
tenho tudo no celular, e não tenho medo de usar.
A
frase é seguida de um suspiro da dona da casa, e o som de passos se arrastando
até a porta trancada. A jovem negra de grandes olhos e belas curvas adentra o
recinto, casaco de frio e calça apertada, examinando a bagunça com ares de
nojo.
—
Você tá um bagaço, hein, miga. — Diz ela, sentando-se na cama para onde a loira
volta a deitar. — Não adianta ter carinha de princesa se você se cuidar como
ogro.
—
...minha mãe que te chamou? — pergunta a loira, sem vontade.
— E
isso importa? O que eu quero saber é como está esse seu coraçãozinho ai.
Ela
passa algum tempo em silêncio, até conseguir dizer as palavras:
— ...
você estava certa, ele realmente estava saindo com outras enquanto ficava
comigo. — As lágrimas começam a brotar — E justo com a vadia da festa, a mesma
que foi atrás dele na noite do nosso beijo.
Evelyn
passa um lenço no rosto da amiga, limpando maquiagem e secando lágrimas,
enquanto afaga o cabelo dela. Após alguns minutos, Claire continua:
— Eu
sou mesmo uma tremenda idiota. Burra, Burra!
A
visitante termina de limpar o rosto da amiga, permanecendo em silêncio. Após algum tempo assim, a loira se irrita e senta de frente para ela.
—
Vai, fala o que quer falar de uma vez!
Evelyn
vai até o computador e desliga a música melancólica, depois sorri para a amiga
de infância, enquanto diz:
— Eu
te avise, Clairzinha. O cara é gato e podre de rico, deve ter fila de mulher
querendo dar pra ele. Você pode achar que ficando só nos amassos está
valorizando seu passe, e tal, mas a verdade é que homem só fingi ser paciente
com as “meninas de família”, que tem seu “próprio tempo”, se puderem comer alguém
enquanto isso.
Ela
se deita ao lado da jovem triste, pés para cima, as posições delas invertidas
agora, e continua com sua sabedoria:
—
Você fez doce demais com o gostosão, só que ele não é como os caras dessa
cidade. Com um homem daqueles você tem que fazer um belo de um trabalho na cama
pra manter.
As
duas ficam um longo tempo em silêncio, só o som do ronronar da gata por todo o
quarto. Claire suspira e então responde:
— Me
recuso a pensar que tudo se resuma a sexo. Tem que existir algo maior que isso
numa relação, Evelyn, não aceito ter que me entregar de cara para alguém só para
poder mantê-lo. Mesmo que dessa vez, finalmente... — Ela pega a gata no colo,
beijando a bichana. — ...finalmente estivesse pronta. Mas você faz tudo parecer
frio e vulgar, do jeito que fala.
Evelyn
ri da amiga, então senta-se ao lado dela e beija sua testa.
— A
diferença entre nós, Claire, é que enquanto você cresceu assistindo Disney e Pixar, eu via Sex and the
City e Friends.
— ...
o professor deu muita matéria, hoje? — pergunta Claire, querendo mudar de
assunto.
—
Nada, o bonitão nem foi. O safado me fez esperar a toa, acredita?
Claire
fica pensativa, e então comenta:
—
Engraçado, agora que você falou, tenho a impressão de tê-lo visto lá no
restaurante. — Ela olha para a amiga, e finalmente exibe um meio sorriso —
Desistiu dele, né?
—
Intelectuais são difíceis, mas sou do tipo paciente. Até o fim do curso é
tempo, e o Paulzinho se juntará aos meus troféus.
[...]
Paul...
Na
noite anterior, algum tempo depois de sair do castelo, Paul Davis entra em sua
casa. Seu corpo e mente cansados, dá passos lentos em direção à cama macia.
Tirando a jaqueta e a arma, joga a bolsa da madre em um canto qualquer e se
deita, tentando mergulhar em um sono tranquilo, nas poucas horas que restam
antes de lecionar na universidade. Ele abre os olhos, sentindo todo o corpo
arrepiado, a sensação de estar sendo observado em meio à escuridão. E o
sentimento de culpa. Sentando na cama, olhando para o nada, move os lábios
lentamente... relutando para soltar as palavras:
— ...
Eu tinha medo que você viesse. Que se juntaria à mim, como todos os outros.
No
lugar que antes estava vazio, uma mulher alta e forte, com roupas parcialmente
queimadas o encara com severidade. Nos olhos dela: tristeza e mágoa. Ela fica
um longo tempo o encarando, então responde:
— Eu
estarei com você... Paul. Golem. Traidor, amante de abominações. — Estende o
dedo acusadoramente para ele. — Estarei com você até vê-lo morrer! Até que os
demônios do inferno venham buscá-lo para queimar pela eternidade!
Paul
não sabe dizer se o que vê é real ou não, seu coração acelera, o suor banhando
seu corpo. Um longo silêncio, e uma lágrima rola pelo rosto de Paul Davis. Mas
dessa vez, verdadeira.
—
Seja bem vinda, então, e junte-se aos outros. — E ele aponta para outras
sombras de mortos que preenchem o quarto, antes vazio.
Em
cada face morta: ódio. Em cada olhar, desejo de vingança.
—
Junte-se ao meu inferno pessoal, madre Pietra Ferdinari. — Ele enxuga as
lágrimas, e sorri em desafio. — Mas seja paciente! Tem muita gente que vou
mandar para o inferno, antes de ir.
Paul
se deita, e olhando para o alto, fala consigo mesmo:
— E a
primeira dessa lista será você... Jeanne Hilton. Prepare-se para encontrar com
o Golem. Prepare-se para morrer.
[...]
Jeanne...
Em
uma sala escura e sem móveis, um jovem aguarda pela morte. De altura e porte
medianos, cabelos negros e olhos da mesma cor, sente o frio do piso sob seu
corpo nu, agora cheio de hematomas, furos e cortes. O jovem se encontra sem
forças: a falta de comida e bebida, aliada a punição física, o fazem apenas esperar
pela chegada da morte.
Queira Deus não demore, reza ele.
Benjamin
dedicou a maior parte de seus vinte e dois anos a obra de Deus, em missões de
infiltração que exigiam a presença de alguém que fosse bom em enganar. Alguém
que usasse a mentira como uma arma a serviço da causa santa, e ele se tornou
bom nisso. A mentira é um pecado, e os mentirosos não herdarão o Reino dos
Céus, ele sabe bem. Mas o que são alguns anos ou décadas sofrendo no
purgatório, até se purificar, diante do avanço da Santa Igreja contra os seres
das trevas?
O
jovem ficou arrasado ao saber da morte da madre inquisidora, Pietra Ferdinari,
“uma santa guerreira”, ele acredita. Fica ainda mais triste por saber que foi
logo após ele dar a informação que ela tanto esperou. Entra agora para o rol
dos mártires, tombados por amor da cruz. Seu único conforto é saber que poderá
revê-la no paraíso, junto da sua família e irmãos da fé.
— Boa
noite, Ben. — voz de mulher, voz familiar.
O
jovem volta a si e encontra a porta meio aberta, iluminando parcialmente o
cômodo. A sua frente uma mulher em um vestido vermelho decotado, atraente e
inclinada de modo que os seios fiquem a mostra. Cabelos castanhos soltos e
maquiagem, ele logo a reconhece, e então vira o rosto. É Jeanne Hilton. Em um
instante ela aparece ao seu lado, agachada. Vira-o facilmente de costas para o
chão e, erguendo delicadamente o vestido, senta-se de pernas abertas sobre ele,
sorriso malicioso no rosto.
— O...o que pensa que está fazendo? — ele
grita, raiva e vergonha misturados — Afaste-se
de mim, seu monstro imundo!
Ela
passeia com os dedos pelo corpo do rapaz, e olhando fundo nos olhos dele,
pergunta:
— Tem
certeza que é isso que você quer, Ben? — move-se sensualmente sobre um jovem nu
e suado — Não é isso que seu corpo está me dizendo.
Ele
sente raiva, tanto dela quanto de seu corpo que começa a corresponder as
investidas. O desejo crescendo dentro de si.
— O
que foi, não me diga que você é virgem? — ela pergunta.
Ele
fecha os olhos, mas acaba reabrindo quando sente a língua dela lamber seus
lábios. Ele junta toda a força que resta e acerta um soco no meio do rosto
dela... a força não é grande, embora o resultado não mudaria se ele estivesse
com sua força habitual.
—
Hum... então você gosta de uma pegada mais selvagem, hein? Não acredito que
nunca tenha conhecido o prazer que uma mulher pode oferecer. — ela abre a mão
dele com delicadeza, então chupa o dedo do rapaz. — O que acha de se tornar um
homem de verdade?
O
coração dele acelera ao máximo, banhado em suor, a excitação o fazendo ignorar
a dor, a raiva e seus votos. Olhos nos olhos, ele não resiste e agarra a
vampira, beijando-a de forma desajeitada, puxando-a com força, até sentir-se
enfim dentro dela. A ação segue seu rumo, a mulher experiente guiando o garoto
em prazeres que ele não conhecia. Quando ela percebe que ele se aproxima do
clímax, se afasta do jovem.
Do
alto dos saltos e ajeitando o vestido, Jeane sorri, olhando com desprezo para
aquele jovem nu, suado e confuso, que a deseja com todas as forças.
— Você...me
quer? — ela pergunta.
Vermelho
e ofegante o rapaz balança a cabeça afirmativamente, querendo apenas terminar o
que começou. A vampira ri, então se inclina novamente na direção dele e diz:
— Você
acredita que eu sou um demônio, não é? Que nós vampiros somos todos anjos
caídos?
Ele
fica confuso, sem entender onde ela quer chegar, apenas pensando em possuir o
corpo dela novamente.
— O
que será que seu deus vai pensar de um homem que trepou com um demônio por
vontade própria? — ela pergunta, olhos nos olhos e sorriso cruel.
Ele
arregala os olhos, em choque e vergonha, corpo trêmulo e raciocínio voltando.
Se lembra dos votos, se lembra da raiva, se lembra de Pietra Ferdinari.
— Boa viagem ao inferno. — a vampira
sussurra, e então encrava a mão no coração do homem.
[...]
Pouco
depois, após um longo banho para retirar de si o sangue e qualquer resquício do
que teve que fazer para conseguir se vingar como queria, Jeanne Hilton, de
roupas casuais e em seu próprio apartamento, está diante da tela do seu
computador. Olha atentamente para algumas manchetes de jornal ou de blogs,
recentes e antigas, e sorri sozinha.
— Mas
que cidade interessante é essa tal Bleak Hill. Não bastasse o filho do Drácula
e o Golem, parece que temos até lobinhos malvados nesse lugar de merda.
Parece que ainda vou ter um longo
trabalho nesse lugar, mas ao menos, um trabalho divertido.
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