sábado, 6 de junho de 2015

Capítulo 8 - Fragmentos e Consequências


Castelo Tepes, trezentos anos atrás.

Uma noite fria e de densas nuvens paira sobre a fortaleza. Do alto da sacada de seu quarto, o casal olha para o céu, como se dele esperasse respostas.

— Uma tempestade está para cair sobre esse lugar. — diz Marie Winnicott, para o jovem ao seu lado — Você teme por nós?

— Crê que o herdeiro do Drácula teria algo para temer, que não fosse perdê-la? — diz ele, segurando em suas mãos delicadas.

Ela beija as mãos do amado com ternura, apoiando-se então no peito dele, como quem busca segurança e paz, diante do caos iminente. Ele a abraça forte em resposta, seus olhos refletindo amargura.

— Viemos tão longe, adquirimos esse castelo no lugar mais isolado que pudemos encontrar, com poucos empregados, poucos conhecidos, tudo para manter os malditos longe de nós! Tudo para preservar um pouco de paz!

— Infelizmente, meu amor, desde que seu pai fez o que fez, a Ordem do Dragão se aperfeiçoou em encontrar e eliminar ameaças. Ficaram realmente muito bons em queimar seus monstros e bruxas, em nome de Deus.

O vampiro se afasta dela, apoiando-se na grade da sacada, o peso do mundo nos ombros.

— Eu sabia que era apenas questão de tempo até nos encontrarem, só pensei que teríamos mais tempo: quem sabe dez ou quinze anos de paz antes que seu fogo queimasse nosso paraíso.

Ela o abraça por trás, ciente que ele não quer que suas lágrimas rubras sejam vistas.

— Meu senhor, meu amado, o Gênesis já nos ensina que o paraíso não foi feito para durar. Adam, você que tem o nome do primeiro dos homens, mais do que ninguém deveria saber disso.

Ao longe, tornam-se visíveis as dezenas de tochas brilhando na escuridão, marchando lenta e inexoravelmente rumo a fortaleza.

— Eles vem para consumir no fogo nosso paraíso. — diz o vampiro, com íris vermelha e presas de fora — Pois eu lhes mostrarei o inferno.



[...]


O mundo se transforma em fogo e sangue, com dezenas e dezenas de corpos tombados pelas mãos do morto-vivo. Suas roupas estão pintadas com o sangue de muitos, incluindo o dele próprio. Com virotes de bestas encravadas nas costas, seu corpo exibe uma coleção de ferimentos que teriam levado qualquer humano a morte: tiros, cortes, queimaduras...

Ele perdeu qualquer noção de tempo, sabe apenas que já há um bom tempo a chuva cai sobre eles. Sente o cheiro de fumaça e o gosto de sangue, assim como uma dor terrível por todo seu corpo. Então, um som ensurdecedor anuncia o disparo da arma, com ele sendo atingido por um tiro de mosquete no ombro. O vampiro cai, a dor o convidando ao sono eterno, a desistir e conformar-se.

Não, ele diz a si mesmo.

Apoiando-se na espada para erguer-se, como sabe que deve fazer, já sem forças, decide ceder aos instintos obscuros, deixando-se dominar pelo monstro. O frenesi assassino é capaz de torná-lo mais predador que humano, porém mais forte. Com olhos de um animal selvagem, ele desvia dos tiros de seus algozes enquanto diminui a distância entre eles. O pescoço do primeiro é rasgado em um piscar de olhos, por presas afiadas e mortais. O segundo mal tem tempo de compreender o que ocorreu quando tem os braços decepados por um rápido golpe de espada, seu grito de horror apenas complementando o absurdo da cena para o terceiro, um velho e trêmulo homem, segurando uma arma de fogo. O vampiro faz questão de mantê-lo vivo enquanto suga seu sangue com avidez, o líquido vermelho tornando-o capaz de prosseguir.

Como um anjo da morte ele passeia pelo campo de batalha, ceifando a vida daqueles que encontra pelo caminho até o castelo. A dor de contemplar seu paraíso transformado em chamas o traz de volta a consciência, e ele apoia-se na espada, assim como na esperança de encontrar sua esposa ainda viva.

— ...queimando — uma voz embargada, vinda de um jovem caído e agonizante — Seu reino satânico agora queima, demônio.

O vampiro baixa os olhos para observá-lo e vê que não passa de um garoto, talvez com quinze anos, sangue escorrendo abundantemente do local onde antes havia uma perna.

Quando é que a fé se transforma em fanatismo?, pergunta-se, quando é que a mensagem de amor e perdão se transforma em ódio e intolerância?

— Eu...eu cumpri minha missão, você vai queimar, junto dos seus servos malignos e da prostitu... — em um movimento rápido a cabeça é separada do corpo, calando a voz que tenta difamar a mulher mais gentil e fascinante que o guerreiro conheceu em sua existência.

Ele se arrasta então em direção aquela que ama, sem saber que esse será seu último encontro. A despedida de um amor que renascerá em outro tempo e lugar.


[...]


Adam...

Ele está novamente na sacada do quarto, de onde à trezentos anos vislumbrou a chegada dos inquisidores. Naquele tempo, lado a lado com a mulher que amava, hoje sozinho, como talvez tenha de passar a eternidade, se quiser proteger aquela que ama. De lá pode contemplar a tênue fumaça que ainda se ergue, os restos do fogo que consumiram a madre.

Outra noite de chuva, e outra vez a Ordem do Dragão chega até as portas da minha casa.

Adam segura nas mãos o cordão em forma de cruz, enquanto olha para a direção onde sabe ficar a casa da Claire.

Não posso arriscá-la de novo, meu amor. Talvez seja melhor que você sofra por um engano, mas permaneça viva, do que seja feliz por um instante, apenas para nos despedirmos para sempre.


[...]


Claire...

Deitada em sua cama, o quarto com as cortinas fechadas e ao som de Love Is A Losing Game (Amy Winehouse), a jovem Winnicott permanece com as mesmas roupas da noite anterior, assim como a mesma maquiagem borrada de choro. As batidas na porta começam a ficar cada vez mais altas e frequentes, assim como o toque do celular e a voz da garota do lado de fora do quarto.

— ...cansei, Claire, não vim aqui de baixo de chuva pra dondoca não me atender. — Reclama Evelyn.

A loira permanece olhando para o teto e calada, enquanto uma gata gorda se deita sobre suas pernas.

— Será que terei de mostrar para o seu papi as fotos daquela festa? Sabe que tenho tudo no celular, e não tenho medo de usar.

A frase é seguida de um suspiro da dona da casa, e o som de passos se arrastando até a porta trancada. A jovem negra de grandes olhos e belas curvas adentra o recinto, casaco de frio e calça apertada, examinando a bagunça com ares de nojo.

— Você tá um bagaço, hein, miga. — Diz ela, sentando-se na cama para onde a loira volta a deitar. — Não adianta ter carinha de princesa se você se cuidar como ogro.

— ...minha mãe que te chamou? — pergunta a loira, sem vontade.

— E isso importa? O que eu quero saber é como está esse seu coraçãozinho ai.

Ela passa algum tempo em silêncio, até conseguir dizer as palavras:

— ... você estava certa, ele realmente estava saindo com outras enquanto ficava comigo. — As lágrimas começam a brotar — E justo com a vadia da festa, a mesma que foi atrás dele na noite do nosso beijo.

Evelyn passa um lenço no rosto da amiga, limpando maquiagem e secando lágrimas, enquanto afaga o cabelo dela. Após alguns minutos, Claire continua:

— Eu sou mesmo uma tremenda idiota. Burra, Burra!

A visitante termina de limpar o rosto da amiga, permanecendo em silêncio. Após algum tempo assim, a loira se irrita e senta de frente para ela.

— Vai, fala o que quer falar de uma vez!

Evelyn vai até o computador e desliga a música melancólica, depois sorri para a amiga de infância, enquanto diz:

— Eu te avise, Clairzinha. O cara é gato e podre de rico, deve ter fila de mulher querendo dar pra ele. Você pode achar que ficando só nos amassos está valorizando seu passe, e tal, mas a verdade é que homem só fingi ser paciente com as “meninas de família”, que tem seu “próprio tempo”, se puderem comer alguém enquanto isso.

Ela se deita ao lado da jovem triste, pés para cima, as posições delas invertidas agora, e continua com sua sabedoria:

— Você fez doce demais com o gostosão, só que ele não é como os caras dessa cidade. Com um homem daqueles você tem que fazer um belo de um trabalho na cama pra manter.

As duas ficam um longo tempo em silêncio, só o som do ronronar da gata por todo o quarto. Claire suspira e então responde:

— Me recuso a pensar que tudo se resuma a sexo. Tem que existir algo maior que isso numa relação, Evelyn, não aceito ter que me entregar de cara para alguém só para poder mantê-lo. Mesmo que dessa vez, finalmente... — Ela pega a gata no colo, beijando a bichana. — ...finalmente estivesse pronta. Mas você faz tudo parecer frio e vulgar, do jeito que fala.

Evelyn ri da amiga, então senta-se ao lado dela e beija sua testa.

— A diferença entre nós, Claire, é que enquanto você cresceu assistindo Disney e Pixar, eu via Sex and the City e Friends.

— ... o professor deu muita matéria, hoje? — pergunta Claire, querendo mudar de assunto.

— Nada, o bonitão nem foi. O safado me fez esperar a toa, acredita?

Claire fica pensativa, e então comenta:

— Engraçado, agora que você falou, tenho a impressão de tê-lo visto lá no restaurante. — Ela olha para a amiga, e finalmente exibe um meio sorriso — Desistiu dele, né?

— Intelectuais são difíceis, mas sou do tipo paciente. Até o fim do curso é tempo, e o Paulzinho se juntará aos meus troféus.


[...]

Paul...

Na noite anterior, algum tempo depois de sair do castelo, Paul Davis entra em sua casa. Seu corpo e mente cansados, dá passos lentos em direção à cama macia. Tirando a jaqueta e a arma, joga a bolsa da madre em um canto qualquer e se deita, tentando mergulhar em um sono tranquilo, nas poucas horas que restam antes de lecionar na universidade. Ele abre os olhos, sentindo todo o corpo arrepiado, a sensação de estar sendo observado em meio à escuridão. E o sentimento de culpa. Sentando na cama, olhando para o nada, move os lábios lentamente... relutando para soltar as palavras:

— ... Eu tinha medo que você viesse. Que se juntaria à mim, como todos os outros.

No lugar que antes estava vazio, uma mulher alta e forte, com roupas parcialmente queimadas o encara com severidade. Nos olhos dela: tristeza e mágoa. Ela fica um longo tempo o encarando, então responde:

— Eu estarei com você... Paul. Golem. Traidor, amante de abominações. — Estende o dedo acusadoramente para ele. — Estarei com você até vê-lo morrer! Até que os demônios do inferno venham buscá-lo para queimar pela eternidade!

Paul não sabe dizer se o que vê é real ou não, seu coração acelera, o suor banhando seu corpo. Um longo silêncio, e uma lágrima rola pelo rosto de Paul Davis. Mas dessa vez, verdadeira.

— Seja bem vinda, então, e junte-se aos outros. — E ele aponta para outras sombras de mortos que preenchem o quarto, antes vazio.

Em cada face morta: ódio. Em cada olhar, desejo de vingança.

— Junte-se ao meu inferno pessoal, madre Pietra Ferdinari. — Ele enxuga as lágrimas, e sorri em desafio. — Mas seja paciente! Tem muita gente que vou mandar para o inferno, antes de ir.

Paul se deita, e olhando para o alto, fala consigo mesmo:

— E a primeira dessa lista será você... Jeanne Hilton. Prepare-se para encontrar com o Golem. Prepare-se para morrer.


[...]


Jeanne...

Em uma sala escura e sem móveis, um jovem aguarda pela morte. De altura e porte medianos, cabelos negros e olhos da mesma cor, sente o frio do piso sob seu corpo nu, agora cheio de hematomas, furos e cortes. O jovem se encontra sem forças: a falta de comida e bebida, aliada a punição física, o fazem apenas esperar pela chegada da morte.

Queira Deus não demore, reza ele.

Benjamin dedicou a maior parte de seus vinte e dois anos a obra de Deus, em missões de infiltração que exigiam a presença de alguém que fosse bom em enganar. Alguém que usasse a mentira como uma arma a serviço da causa santa, e ele se tornou bom nisso. A mentira é um pecado, e os mentirosos não herdarão o Reino dos Céus, ele sabe bem. Mas o que são alguns anos ou décadas sofrendo no purgatório, até se purificar, diante do avanço da Santa Igreja contra os seres das trevas?

O jovem ficou arrasado ao saber da morte da madre inquisidora, Pietra Ferdinari, “uma santa guerreira”, ele acredita. Fica ainda mais triste por saber que foi logo após ele dar a informação que ela tanto esperou. Entra agora para o rol dos mártires, tombados por amor da cruz. Seu único conforto é saber que poderá revê-la no paraíso, junto da sua família e irmãos da fé.

— Boa noite, Ben. — voz de mulher, voz familiar.

O jovem volta a si e encontra a porta meio aberta, iluminando parcialmente o cômodo. A sua frente uma mulher em um vestido vermelho decotado, atraente e inclinada de modo que os seios fiquem a mostra. Cabelos castanhos soltos e maquiagem, ele logo a reconhece, e então vira o rosto. É Jeanne Hilton. Em um instante ela aparece ao seu lado, agachada. Vira-o facilmente de costas para o chão e, erguendo delicadamente o vestido, senta-se de pernas abertas sobre ele, sorriso malicioso no rosto.

O...o que pensa que está fazendo? — ele grita, raiva e vergonha misturados — Afaste-se de mim, seu monstro imundo!

Ela passeia com os dedos pelo corpo do rapaz, e olhando fundo nos olhos dele, pergunta:

— Tem certeza que é isso que você quer, Ben? — move-se sensualmente sobre um jovem nu e suado — Não é isso que seu corpo está me dizendo.

Ele sente raiva, tanto dela quanto de seu corpo que começa a corresponder as investidas. O desejo crescendo dentro de si.

— O que foi, não me diga que você é virgem? — ela pergunta.

Ele fecha os olhos, mas acaba reabrindo quando sente a língua dela lamber seus lábios. Ele junta toda a força que resta e acerta um soco no meio do rosto dela... a força não é grande, embora o resultado não mudaria se ele estivesse com sua força habitual.

— Hum... então você gosta de uma pegada mais selvagem, hein? Não acredito que nunca tenha conhecido o prazer que uma mulher pode oferecer. — ela abre a mão dele com delicadeza, então chupa o dedo do rapaz. — O que acha de se tornar um homem de verdade?

O coração dele acelera ao máximo, banhado em suor, a excitação o fazendo ignorar a dor, a raiva e seus votos. Olhos nos olhos, ele não resiste e agarra a vampira, beijando-a de forma desajeitada, puxando-a com força, até sentir-se enfim dentro dela. A ação segue seu rumo, a mulher experiente guiando o garoto em prazeres que ele não conhecia. Quando ela percebe que ele se aproxima do clímax, se afasta do jovem.

Do alto dos saltos e ajeitando o vestido, Jeane sorri, olhando com desprezo para aquele jovem nu, suado e confuso, que a deseja com todas as forças.

— Você...me quer? — ela pergunta.

Vermelho e ofegante o rapaz balança a cabeça afirmativamente, querendo apenas terminar o que começou. A vampira ri, então se inclina novamente na direção dele e diz:

— Você acredita que eu sou um demônio, não é? Que nós vampiros somos todos anjos caídos?

Ele fica confuso, sem entender onde ela quer chegar, apenas pensando em possuir o corpo dela novamente. 

— O que será que seu deus vai pensar de um homem que trepou com um demônio por vontade própria? — ela pergunta, olhos nos olhos e sorriso cruel.

Ele arregala os olhos, em choque e vergonha, corpo trêmulo e raciocínio voltando. Se lembra dos votos, se lembra da raiva, se lembra de Pietra Ferdinari.

Boa viagem ao inferno. — a vampira sussurra, e então encrava a mão no coração do homem.


[...]


Pouco depois, após um longo banho para retirar de si o sangue e qualquer resquício do que teve que fazer para conseguir se vingar como queria, Jeanne Hilton, de roupas casuais e em seu próprio apartamento, está diante da tela do seu computador. Olha atentamente para algumas manchetes de jornal ou de blogs, recentes e antigas, e sorri sozinha.

— Mas que cidade interessante é essa tal Bleak Hill. Não bastasse o filho do Drácula e o Golem, parece que temos até lobinhos malvados nesse lugar de merda.

Parece que ainda vou ter um longo trabalho nesse lugar, mas ao menos, um trabalho divertido.






Nenhum comentário:

Postar um comentário