sexta-feira, 29 de maio de 2015

Capítulo 7 - Melodia da Morte


Sob uma chuva intensa, com vento forte e visibilidade baixa, Pietra dirige, carregando ao lado do corpo uma escopeta. Graças as dicas do professor, conseguiu encontrar o carro dos alvos, e se esforça para não perdê-lo de vista. Paul segura a pistola que ela lhe deu, reconhecendo as armas como sendo aquelas de que o vendedor da loja falou ao Golem.

“Se a situação obrigá-lo, use isso”, disse ela,  “É uma pistola comum, porém a munição é de prata, uma fraqueza dos demônios”.

Ele se põe a analisar a situação.

Ela é forte, os vampiros que matou deixam isso claro, reflete ele, a questão é: o quão fortes esses dois são?

Se estivesse com a máscara e o traje, ele se sentiria mais confiante. Como Golem, Paul Davis é capaz de resistir a tiros e murros, capaz de submeter seus inimigos ao medo e horror. Foi assim que matou tantos caçadores de vampiros até hoje. Ainda assim, decidiu ir apenas como ele mesmo, um simples homem, ao restaurante, pronto a encontrar e matar uma mulher. Mas não vampiros.

Adam, Adam, será você realmente o Vlad Drácula?, se pergunta, se matá-lo, posso esperar por um milagre, ela será devolvida à mim, tal como era à dois anos atrás?

[...]


Á caminho do castelo, Jeanne Hilton dirige pela estrada chuvosa e lamacenta, observando o homem ao seu lado olhar para o nada.

— Está assim tão preocupado com a garota? — ela pergunta, debochada.

Ele mantêm os olhos no matagal que cerca a estrada, e então responde:

— Gosta mesmo de testar minha paciência, não? Suas gracinhas trarão consequências desagradáveis.

— Você é divertido Tepes, uma graça. Se está assim tão preocupado com sua imagem de bom moço, não convide uma mulher ao seu castelo, e nunca vá com ela à lugares públicos em uma cidadezinha em que todo mundo é primo de todo mundo.

— Lembro agora que o restaurante novo foi ideia sua. — ele resmunga — Agora entendo o motivo.

Ela apenas sorri em resposta, enquanto coloca Bohemian Rhapsody, do Queen, para tocar baixo.

— Que previsível, a freirinha está vindo pegar os vampirinhos malvados. Aposto que seu amigo professor está com ela. — Ela olha para o retrovisor e acelera o carro. — Sabe de algum atalho para sua casa?

Ele pensa sobre o assunto, enquanto se pega admirando a melodia da música, como puderam mesclar a música clássica de que tanto gosta com os sons agressivos dos instrumentos modernos, criando algo único a partir disso. E belo.

— Sei vários... para quem está a cavalo ou a pé. Para carros, nenhum. — diz, debochado.

— Ótimo, Conde Drácula! Se o pior acontecer, você luta e eu fujo.

E pisa fundo no acelerador.

Claire, sou eu um monstro antigo e você uma mulher moderna, pensa ele, será que podemos, assim como nessa música, alcançar a harmonia?


[...]


No restaurante, a família Winnicott compartilha de comida italiana ao som de Jazz, do mesmo tipo que embalou o jantar dos vampiros. Claire navega no facebook pelo celular, mal tendo tocado na comida, nitidamente de mau-humor.

Eu sabia que tinha algo de muuuiito estranho num cara novo como ele dizer que não tem face, twitter ou outras redes sociais. Além de claro, viver sempre ocupado demais se quer para atender a um telefonema durante um dia inteiro.  

Os pais olham para ela e um para o outro. De repente, a senhora Hellen Winnicott diz a filha:

— Bem bonitão esse seu amigo, hein, Claire?

Silêncio da parte dela, ainda sem tirar os olhos do aparelho.

— ...um rapaz bonito e rico numa cidade como a nossa é um imã poderoso para todo tipo de mulher. — diz a elegante senhora, bem vestida e bonita para a idade, enquanto prova uma iguaria estrangeira.

O pai resolve entrar na conversa, enquanto tenta compreender seu prato exótico:

— É o que eu digo sempre, filha: homem é homem! Demora uns anos para sossegar.

A mulher balança a cabeça em concordância, ele continua:

— Eu com meus dezoito, saia com todas as menininhas dessa cidade. Fora quando viajava com meus amigos, saíamos com todo rabo de saia que víssemos pela frente! Acho melhor a senhorita tirar o playboyzinho da cabeça, se não quiser chorar à toa.

Ela ergue os olhos do celular, rosto vermelho de raiva, e fala, secamente:

— Vocês podem por favor, se preocuparem com o próprio casamento e deixarem de se meter na minha vida?

O pai enfia a estranha comida na boca, engole com dificuldade e fala:

— Somos seus pais, Claire. Existimos para nos meter na sua vida.

A garota se levanta e vai calmamente até o banheiro feminino. Percebendo o movimento de mulheres desconhecidas, se tranca atrás da primeira porta que encontra aberta. Põe a mão na direção em que ficava o colar, e abraçando o próprio corpo, libera as lágrimas contra as quais tem lutado desde que lançou o objeto fora.

Por que, Adam, por que brincar comigo dessa forma cruel?, pensa ela, enquanto sente as lágrimas molhando o rosto quente, e todo corpo a tremer.

Pela primeira vez na vida... eu realmente me senti amada, completa! Como se algo que sempre busquei tivesse sido enfim encontrado, como se uma parte do meu coração há muito perdida fosse recuperada. Eu fechei os olhos e me entreguei, mesmo lutando contra meu bom senso e racionalidade, eu acreditei em você!

E então eu pergunto: o que fui para você, Adam? E por que, por que inferno uma parte de mim quer correr atrás de você apesar de tudo isso?   


[...]


A madre mantêm a atenção no volante, vendo que a vampira conseguiu aumentar a velocidade mesmo em um terreno escuro e lamacento, o que a obriga a acelerar ainda mais num caminho já perigoso e escorregadio.

Malditos demônios e seus olhos noturnos, pensa.

Pietra foi a única menina a ser criada no monastério da Ordem, no local que prepara Inquisidores: caçadores cristãos dos monstros das lendas. Acostumada a uma vida de sacrifício e superação, já aceitou plenamente o encargo de eliminar o casal de mortos-vivos como missão sagrada. Já estava preparada para Jeanne, embora precise extrair dela algumas confissões, antes de despachá-la ao inferno.

Só eu e o professor contra a vampira e ... o lendário Drácula? Não importa, pensa ela, a Virgem não me daria um fardo que não pudesse carregar. E se tombarmos... que o Pai do céu nos receba em seus braços, e perdoe a um homem cético, mas que hoje se entrega ao santo sacrifício.

Ela então olha para o professor, que parece perdido nos próprios pensamentos, olhando fixamente para a pistola.

— Não tema, Paul, será tudo conforme a vontade de Deus. Apenas me deixe agir e, caso ache necessário, use essa arma. — diz ela, tentando tranquilizá-lo, enquanto com uma das mãos desembainha uma lâmina de prata — Eu usarei a minha, porém a você é aconselhado manter-se distante deles.

Paul observa o brilho da arma prateada, e olha para o carro que perseguem.

Vontade de Deus, Pietra?,  ele pensa, e se a vontade dele for minha morte, ou a sua?

A distância dos carros parece aumentar, Paul não sabe dizer se isso é uma benção ou maldição, mas decide agir.

— Conheço um atalho, que pelo jeito nem o Conde conhece. Siga a esquerda naquela árvore.

A caçadora obedece, e eles entram num desvio promissor, enquanto o homem reflete. Dois vampiros de poder desconhecido à frente, contra eles, um assassino e uma fanática. Se vencerem, o orgulho da vitória e uma esperança... Mas a grande questão é: e se perderem? Se falhar, perde tudo, a vida, a esperança e a chance de rever a mulher que ama. Olha então para aquela mulher grande e forte, de feições duras e inaptidão social. Uma fanática, sem dúvidas, mas uma mulher sincera, capaz de se sacrificar, alguém com um forte propósito na vida. Diferente dele.

Ela repara no olhar dele, profundo e triste em sua direção. Fica levemente corada e esboça um sorriso tímido sem se dar conta.

— Concentre-se Paul, vai precisar estar alerta quando chegar a hora de puxar o gatilho. — ela diz, olhos no terreno enlameado.

— ...eu sei. — ele diz. E puxa o gatilho.

O carro bate com violência, empurrando a mulher ferida contra o volante, Paul se esforçando para manter o equilíbrio e terminar o trabalho. O corpo dela reage por instinto, uma mão fraca e trêmula em direção ao pescoço ensanguentado e outra erguendo uma lâmina prateada... porém sem forças. Em seus olhos, sangue e lágrimas, um grito de dor preso a garganta, uma dor mais profunda que apenas física.

Quando seus olhos se encontram, vê tristeza neles, mas também determinação. Olhos de alguém que sabe o que está fazendo, olhos de alguém que não vai parar. Lê os lábios, mas não ouve o som.

— Perdão. — ele diz.

O som do tiro ecoa pela floresta, o sangue do pescoço de uma mártir, banhando o assassino.


[...]


Adam e Jeanne estão enfim no grande salão de visitas, fogueira acessa, estátuas antigas, grandes cortinas e quadros da Renascença decorando o lugar. Ao lado do jogo de sofás em que seu mestre se senta, quase como parte da mobília, se encontra Jonathan Lincoln, o último representante de uma linhagem de servos dedicados à Adam Tepes. E o primeiro em três séculos a vê-lo.

A jovem desfila pelo salão, admirando a arquitetura e decoração.

— Nesse momento, os dois pombinhos devem estar planejando a melhor forma de invadir esse lugar e nos queimar na fogueira. — ela diz, deslizando a mão pelo quadro de um camponês. — É sério mesmo que com toda essa grana você não tem um maldito segurança?

Ele dá de ombros. — Nunca achei necessário antes. Mas eu duvido que o professor Davis seja nosso inimigo, acho que seja bem o contrário.

Ela ri, sarcástica. Se aproxima e fica ao lado do vampiro, dizendo:

— Não sei como era no seu tempo, querido, mas hoje em dia temos que manter os olhos bem abertos se quisermos sobreviver por mais umas noites.

De repente uma ligação, Adam atende o celular, Lincoln e Jeanne observam e aguardam.

— ... Claro que sim, professor. Estou indo então. — ele diz, desligando e erguendo-se do sofá.

— Onde vai? — a vampira pergunta.

— O professor Davis precisa de uma carona até aqui, imagino que você não se incomode de aguardar. Venha Lincoln, preciso que você dirija. — ele diz.

Ela o observa embasbacada, quando ele já está à beira da porta, a ouvi dizer:

— Vo-Você não percebe o quão óbvia é essa armadilha? — o encara, pasma. — Os dois vão atraí-lo para a floresta chuvosa e pegá-lo lá!

Ele continua o caminho, Lincoln retornado com um guarda-chuva.

— Só existe um jeito de descobrir. — E sai com o mordomo ao lado.

Quando a limousine chega ao local, é possível ver a distância uma picape em chamas, e próximo, um homem encharcado à sua espera, sentado numa pedra. Adam vai em sua direção, guarda-chuvas numa mão e a outra no bolso, e para ao lado dele, protegendo-o da chuva.

— Eu a matei... vampiro. — diz Paul, cotovelos apoiados nos joelhos, olhar perdido.

— Eu já imaginava. — diz Adam, sem qualquer intenção de negar o que é.

— Vamos ao meu castelo Paul, prometo responder as suas perguntas. — o vampiro diz, mão estendida.

Paul se levanta, com uma mão pega a bolsa de viagem da mulher que matou, com tudo que pôde roubar dela. Com a outra, aperta a mão do vampiro, e diz:

— ...Não gosto muito da ideia de entrar no covil do vampiro, mas que se dane. Vamos então.

Ele olha para o carro em chamas uma última vez, e pensa na mulher cujo corpo queima lá dentro, assim como queimaram as vítimas dela própria. Aquela cujo sorriso tímido o perseguirá pelo resto da vida.


[...]


Minutos depois, dentro do castelo.

Um homem e uma mulher apontam armas um para o outro. O homem é Paul Davis, encharcado, sapatos sujos de lama, aponta a escopeta com balas de prata roubada de sua última vítima, para uma vítima em potencial. A mulher é Jeanne Hilton, a vampira está de pé na parede do castelo, à cerca de três metros do chão. Com seu vestido vermelho e salto, aponta uma Magnum 45 em direção ao professor.

No meio de tudo isso, está Adam Tepes, observando ambos, e decidido a tomar uma atitude arriscada. Ele se vira para seu fiel servo e pede:

— Erga as cortinas, mostre os quadros, Lincoln.

O homem fica hesitante, então sussurra para seu mestre:

— Está certo disso, senhor Tepes? — pergunta ele, preocupado. — Nenhum desses dois parece muito digno de confiança.

Adam põe a mão no ombro do homem e sussurra de volta:

— Estou sim, pode fazer. É hora de revelar a verdade.

A vampira passeia pela parede, observando Paul. Então pergunta:

— Por que exatamente matou sua amante, professorzinho?

— Na verdade eu pensei que ela fosse sua ex. — ele responde, dando mais um passo à frente. — E meus motivos não são da sua conta.

— Um assassino de caçadores... interessante, ouvi falar de um bastante famoso. — ela faz uma pausa, e então diz as palavras, provocativamente — Golem o nome dele. Será que você o conhece, Paul?

— Infelizmente não, mas se conhecesse, pediria pra ele abrir uma exceção pra você. — Responde Paul, tentando disfarçar a surpresa diante da dedução dela.

— Abaixem as armas! — Adam grita, repentinamente sério, sua aura emanando — Exijo algum respeito na minha casa.

O casal se analisa por alguns momentos, então abaixam lentamente as armas. Ela permanece onde está, Paul caminha em direção ao vampiro.

Ele aponta a arma para cabeça do Adam e então pergunta:

Afinal, você é ou não Vlad III?

A vampira apenas observa, Lincoln repentinamente ergue as cortinas laterais, exibindo uma série de quadros de ambos os lados, com pinturas de época. Adam os encara, sorriso no rosto.

— Foi realmente divertido alimentar as fantasias de vocês. Mas eu não sou o Drácula.

Jeanne o olha com expressão de quem escuta o óbvio, Paul aguarda.

— Mas como eu sempre disse, o sobrenome é meu. Sou Adam Tepes, filho de Vlad Tepes III.

Os quadros antes escondidos, bastante avariados pelo tempo, exibem uma pintura de Vlad III em seus tempos como rei, e outra já como vampiro. Um homem de feições duras, longos cabelos negros cacheados e grossos bigodes. Paul percebe que se trata de um quadro que nunca viu antes, o estilo em seu quadro como humano é muito mais tradicional que aquele em sua forma sobrenatural, feito possivelmente por alguém que não o conheceu, dado os traços exagerados e malignos.

Adam caminha para o lado oposto, onde as cortinas levantadas exibem outras pinturas, no mesmo estado frágil de conservação. Uma delas retrata uma bela mulher com um bebê de colo, que pela semelhança pode ter sido sua mãe. Outro mostra um Adam pouco mais jovem do que aparenta ser agora, com armas de cavaleiro, diante de bandeiras de famílias nobres.

— Ele me gerou quando era humano, com a mulher que amava, como seu herdeiro, na Valáquia. Quando eu cresci, após ele se tornar o monstro conhecido como Drácula, decidiu me tornar herdeiro disso também. Contra minha vontade, me transformou naquilo que sou hoje: um vampiro.

Paul abaixa a arma e se senta no sofá, suspira e fala:

— Uma pena, seria divertido estourar sua cabeça e descobrir o que aconteceria com os outros vampiros se o Drácula fosse destruído.

Adam vai até o quadro do pai, olha para ele com ar melancólico e diz:

— Se fosse ele, o tiro não seria o suficiente. E mesmo que fosse, ele já foi morto antes... mas retornou.

Adam sente uma mão deslizando por suas costas, a vampira encosta o corpo no dele e então fala, em tom brincalhão:

— O que significa que o filhotinho de Drácula aqui precisa de contatos e amigos nesse novo mundo, já que não é tão fodão como fez parecer.

Ele se vira para ela, tentando não pensar no passado, não pensar na Claire, e responde:

— Estou disposto a fazer aliados, senhorita Jeanne. Se meu pai retornar nesses tempos, todos estaremos em perigo. Sejam vampiros... — Vira-se para encarar o professor — ... ou humanos.

— ... Se seu pai retornar? — pergunta o professor.

— Ele já foi destruído e voltou antes, eu sinto que ele voltará novamente... e ainda mais terrível e poderoso. Se ele voltar agora, após tanto tempo que passei dormindo, não sei o que fará à esse mundo.


[...]

Em uma velha igreja abandonada e caindo aos pedaços, em meio a completa escuridão, um homem de mantos carmesim se aproxima do altar. Em cima dele, uma grande bacia dourada, contendo um líquido vermelho e viscoso, tendo ao lado o corpo nu da mulher de quem retiraram todo o sangue.

O homem se prostra, em reverência ao altar, enquanto recita palavras em uma língua desconhecida. Depois, retirando uma adaga cerimonial, fere profundamente a própria mão, deixando escorrer seu sangue morto para dentro do receptáculo. Ele então fita longamente o líquido, parecendo enxergar coisas que ninguém mais poderia.

Após um longo tempo, ergue cerimonialmente uma taça cheia do sangue misturado, elevando diante de olhos que enxergam na escuridão, ao menos uma dezena deles. Seus próprios olhos enxergam tão bem quanto, suas presas exibindo um sorriso satisfeito.

— Irmãos no sangue e na morte, eis que nosso senhor está as portas. Bebamos do sangue ainda outra vez em expectativa, sabendo que em breve, ele nos dará de seu próprio sangue.

O velho Dragão retorna, bebamos em nome dele.





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