A vida está no sangue, diziam os
cristãos.
Nesse
caso, o demônio se apossou de parte da minha. De uma grande parte, diga-se de
passagem. Passei os dias e noites seguintes oscilando entre a consciência e o
sono, esse último, vencendo-me na maior parte do tempo. Podia ouvir meu coração
batendo de forma acelerada, como em um canto desesperado de morte. Sentia-me
gélida, cansada e fraca.
Como som
de fundo, ouvia o girar das rodas de uma carruagem, assim como o som dos cascos
dos cavalos. Muitas vezes, reconhecia a voz de Marjorie, falando coisas que eu
não conseguia compreender totalmente, ou ninando-me como a uma criança. Sentia
seu cheiro, seu calor, ou simplesmente suas mãos administrando algum líquido de
odor estranho por minha boca.
—
Beba tudo, minha querida. — Ela dizia, enquanto me fazia beber uma de suas
poções. — Precisamos que esteja forte, até chegarmos ao nosso destino.
Eu
não tinha condições de discutir, minha raiva se traduzia em tentar empurrá-la
com meus braços sem força, ou mover a cabeça, recusando seus remédios. Como era
de se esperar, tudo em vão. Depois de algum tempo, percebi que estava em uma
cama, e que ela balançava ritmadamente. Após a terceira vez que vomitei, me dei
conta de que se tratava de um navio. Pelas conversas que ouvia entre a criada
que cuidava de mim e outros tripulantes, estávamos deixando a Grã-Bretanha. E
eu sabia, infelizmente, que não era rumo a minha querida Irlanda.
Algum tempo depois, (eu não saberia dizer o
quanto, uma vez que qualquer noção de tempo havia me abandonado desde aquela
fatídica noite), chegamos em terra. Alice, a jovem criada de Marjorie que
ajudara em meu aniversário, era a única companhia para além dela própria. Era
uma menina de quinze anos, de cabelos castanhos encaracolados, e franzina. É
difícil discutir quando sua mente não consegue raciocinar com clareza, e seu
corpo não tem forças para corresponder a intensidade de suas emoções, por isso
eu me limitava a beber e comer o necessário para ficar melhor, fazer minhas
necessidades e prestar atenção a tudo em minha volta. Havia sempre uma grande
escolta conosco, de homens bem armados, para além de guias e outros serviçais. Para
minha surpresa, em nenhum momento revi o homem que bebeu de mim, mas sua imagem...
essa ainda era nítida em minha mente. Marjorie evitava confrontar-me,
tratando-me, ora como uma mãe preocupada, ora como uma carcereira vigilante.
— Esteve
muito perto da morte, Charlote. Sua alteza não resistiu ao sabor do seu sangue,
bebendo muito mais do que deveria. — Um dia ela me disse, nós duas ao lado da
carruagem que pausara a viajem, em meio ao sol do meio-dia. — Sem meus dons e
conhecimentos, não teria sobrevivido.
Eu,
que começava a sentir minha forças retornando, não pude deixar de soltar uma risada
de escárnio.
—
Espera meu agradecimento, amada mestra?
— Perguntei, a encarando com vigor. — Me dê uma adaga boa e afiada, e terei
prazer em demonstrar o tamanho de minha gratidão.
— Me
mataria, Charlote? Sua única amiga, sua mestra? — Ela perguntou, inclinando-se
em minha direção, com um sorriso atrevido.
Ela
chamou então por um dos guardas, que lhe entregou uma adaga que trazia com ele.
A qual ela depois, estendeu a mim.
— Faça,
Charlote. Corte meu pescoço, e faça valer suas palavras. — Me disse ela, sem
hesitar.
Eu
peguei a arma, olhando para sua lâmina afiada, me perdendo em seu brilho
metálico. E olhei para Marjorie. Minhas mãos tremiam...tremiam de raiva. Dei um
passo à frente, colocando a coisa no pescoço dela. Eu tinha raiva, muita raiva!
Sentia-me magoada e traída. Os olhos daquela mulher me fitavam com ceticismo,
como uma mãe diante de uma filha atrevida. E permanecemos assim, até que
finalmente ela retirou a adaga de minha mão, deixando-me ainda mais impotente
que antes de minha ameaça vazia.
—
Você ainda é só uma garota, Charlote. — Me disse, com desdém. — Pode gritar e
ameaçar, mas não passa de uma criança falando alto.
Um
tapa, foi tudo que tive forças para fazer.
—
Confiei em você, sua vagabunda. — Eu disse, fogo em meus olhos.
Marjorie
sorria, enquanto virava o rosto de volta para o meu, começando uma frase que
não pôde terminar, pois dei outro tapa, mais forte que o anterior.
—
Admirava você, eu a amava, como a uma irmã.
Pude ver
uma linha de sangue escorrendo dos lábios de minha antiga amiga, enquanto seus
olhos se enchiam de ódio, naquele rosto vermelho pela surra que recebeu.
—
Meninas levadas, vão para a cama mais cedo. — Ela me disse, encostando seus
dedos em minha testa. Não saberia dizer o que aconteceu, apenas que demorei um longo
tempo até ficar consciente de novo.
Quando finalmente despertei, era noite. E
algo em mim dizia, estávamos em meu destino final.
Estava
em um quarto, deitada sobre uma cama grande e confortável. Vestia uma camisola
branca, e haviam calçados aguardando para serem usados. O quarto era grande,
todo de pedra, com móveis luxuosos e iluminado por um castiçal de velas. Havia
também uma janela, me convidando a olhar por ela e descobrir um novo mundo. E
foi isso que fiz. Sob um céu estrelado, vislumbrava do alto de uma torre, mais
alta que qualquer outro local em que já tivesse pisado, a imponência do castelo
de meu algoz. Suas muitas torres e repartições, seus muros e seus sentinelas.
Aquilo me fez perder o fôlego.
—
Senhora, é bom vê-la de pé. — Ouvi a voz de Alice, vinda da porta. — É hora do
jantar, e sua alteza e seus convidados a aguardam.
Senti
um arrepio ao lembrar daquele homem. Mas pouco importava se ele era da realeza,
se era um monstro... Charlote Berthory não se sujeitaria a ninguém!
Uma
vez que estava com roupas apropriadas, acompanhei Alice até o salão de jantar.
O caminho me deu alguma noção da dimensão do lugar, com corredores e
escadarias, mas nada comparável ao grande salão. Haviam quadros imensos,
retratando o que só poderiam ser antepassados do príncipe, assim como estátuas
e outros objetos de arte local. Uma grande mesa de madeira preenchia o centro,
com cadeiras dispostas de ambos os lados, a maior parte delas preenchidas por
homens bem vestidos. A comida e bebida eram fartas, e dois soldados vestindo armaduras
de placas e armados com espadas, se mantinham posicionados em lados opostos do
salão. Na cabeceira da mesa, ele: o homem que fazia meu sangue ferver. Ele
vestia um grosso casaco negro, sobre roupas de linho cinzentas.
Os
homens conversavam em alta voz, numa língua que eu não conhecia, coisa que foi
diminuindo conforme eu era vista. Caminhei até o meu anfitrião, ignorando a
todos os outros, até parar diante do homem que me encarava com olhos curiosos.
— É um prazer vê-la novamente bem. — Ele me
disse, sem se mover. — Sente-se, prove minha comida, beba meu vinho. Ceie
comigo.
— Não
vou comer ou beber até que me dê garantias de voltar a minha terra! — Afirmei
eu, com a voz confiante. — E a isso sua força bruta não pode me obrigar.
Eu
estava diante de um príncipe, em frente aos seus súditos, fazendo exigências. Mas
por estranho que fosse, não sentia medo.
—
...será que não? — Ele perguntou, enquanto mexia na ponta do bigode com os
dedos.
Então
notei seus olhos negros, novamente se tornarem vermelhos como o sangue. Algo
neles me prendendo, me atraindo...
— Sente-se, Charlote. Coma, beba e
cale-se, até estar satisfeita.
Sua
voz não era um convite, nem mesmo uma ameaça: era uma ordem. Uma ordem que de
alguma forma eu não conseguia contrariar. Em um instante, senti meu corpo sendo
forçado a tomar o assento que me foi cedido ao seu lado, pegar nos talheres e
comer aquilo que diante de mim era colocado. Em outras circunstâncias, acharia
aquela comida deliciosa, mas naquele momento, ela era temperada pelo amargo
gosto do ódio. Não conseguia falar ou sair, na verdade, mal conseguia limpar as
lágrimas que teimosamente escorriam por minha face. Acredito que poucos ali
entendiam o suficiente do inglês para compreender as palavras que troquei com
Vlad, ainda assim, fingiam ignorar minha presença, pelo bem da noite.
Ao me
sentir satisfeita, a força que me dominava pareceu se esvair. Eu o olhava e
minhas mãos tremiam, mas ao contrário de Marjorie, por quem de alguma forma eu
ainda guardava certa afeição, não havia nada quanto a ele que me impedisse de
ir até as últimas consequências. Todos ali comiam e bebiam, exceto ele, que
apenas se mantinha observando a cada um daqueles homens, em meio a conversas
que eu não podia entender. Eu estava sentada ao seu lado direito, enquanto ele
respondia a um velho e gordo homem a sua esquerda. Naquele momento eu não
conseguia pensar em nada que não fosse a morte daquele homem. Não seria uma
escrava, mesmo que sob o título de princesa. Se não era possível resistir ao
seu poder, se a partir dali meu futuro era ser uma boneca de gesso em suas
mãos, de nada valeria viver.
E foi
com esse pensamento que me joguei contra ele, derrubando-o da cadeira e empunhando
uma faca afiada em direção ao seu peito! Caímos juntos, e pude ver a surpresa
em seus olhos ao encontrarem com os meus, sentir seu sangue quente espirrando
sobre mim, enquanto eu encravava e retirava a grossa lâmina de seu coração! Eu
gritava, um grito de desespero e libertação, o grito de uma assassina que logo
se juntaria aos mortos. Não parei até ser retirada a força, um dos guardas
segurando meu pulso e me arrastando para longe de seu príncipe morto. Pude
contemplar a surpresa e horror nos olhos dos presentes, e o silêncio que se
seguiu ao meu ato.
Até ouvir sua voz.
Começando
como um riso baixo, até se transformar em uma risada capaz de preencher todo o
salão. Aqueles homens pareciam tão surpresos quanto eu ao contemplar seu
príncipe erguer-se do chão sem esforço algum, como se elevado por uma força
sobrenatural. Ele ainda gargalhava enquanto rasgava sua camisa já perfurada por
minha faca e manchada por seu sangue, revelando um peito com marcas as quais
nenhum homem deveria sobreviver. Eu arfava enquanto via aquelas feridas
começarem a se fechar, ainda que lentamente. Eu o vi fazer isso antes, quando
fechou um único corte na altura do ventre, algo sim, fantástico, mas jamais
imaginei que ele poderia fazer o mesmo com nove facadas no coração.
Ao
contrário de todos os demais, os guardas não pareciam nem um pouco abalados. O
que me segurava me deixou, e cada um deles se dirigiu para um lado do salão.
—
Estou decepcionado com você, Charlote. — Ele dizia, enquanto caminhava até mim.
— Lhe trago para o meu castelo, coloco tudo a seus pés e é assim que me
retribui?
Ele
me pôs de pé, suas mãos em meu rosto. Por um instante, senti que ele tomaria
meu sangue de novo, dessa vez até minha morte.
— Mas
como posso ficar bravo com uma criatura tão linda? — Dito isso, ele uniu seus
lábios aos meus, me beijando com intensidade. — Jamais ferirei você, minha
noiva. Quanto a isso, não precisa temer.
Fiquei
totalmente sem ação enquanto assistia seus súditos olhando assustados para ele,
o monstro de olhos vermelhos e presas, o homem que não podia morrer.
—
Infelizmente, Charlote, o mesmo não pode ser dito sobre eles. Homens que viram
demais.
O que
ele disse em seguida foi em romeno, e embora naquele momento eu não
compreendesse, posteriormente ficou claro para mim.
—
Lordes da Valáquia, senhores de nossa amada capital Tirgoviste. — Vlad dizia, de braços abertos e voz imponente. — Vocês
vieram hoje a minha casa me aborrecer com seus problemas, reclamar de meus impostos
e mendigar por minha ajuda. Me lançam seus infortúnios e cobram de mim uma
solução!
Os
homens pareciam cada vez mais assustados, um ou outro cochichando algo para um
companheiro igualmente tenso, alguns olhares em direção as portas.
—
Minha noiva por outro lado, ao tentar tirar minha vida, solucionou a questão. Ao
me obrigar a revelar minha verdadeira natureza diante dos seus olhos, ela me
obriga também a condenar cada um de vocês a morte.
Começou
uma série de protestos, berros e pedidos de clemência, ainda assim, a voz dele
se impunha sobre a de todos os outros. Sua autoridade inquestionável.
— Hoje
os senhores são acusados de alta traição, por conspirarem contra seu príncipe.
A sentença é a morte. Suas famílias serão condenadas a trabalhos forçados em nossas
muralhas, e seus bens serão confiscados. — Ele dizia, sorriso no rosto. — De
tal modo, não só o tesouro real é abastecido, nossas muralhas fortalecidas, como
posso colocar homens melhores que os senhores em vossos lugares. Homens que
reclamem menos, e trabalhem mais. Não é mesmo uma ideia excelente?
Após essas palavras, cada um daqueles homens
desatou a correr em direção as saídas, sendo detidos pelos guardas que
protegiam as portas. Os dois agora estavam sem seus elmos. Ambos tinham presas.
—
Charlote, minha amada. Peço que se retire aos seus aposentos, é hora de meus
soldados e eu cearmos, e como garotos, podemos fazer muita sujeira. — Ele me
disse, ao que comecei a me afastar.
O que
se seguiu foi um banho de sangue. Os guardas abatiam os homens que tentavam
passar, sem dificuldade. Vlad ergueu dois homens pelo pescoço, um em cada mão,
e pude ouvir o som de seus ossos partindo sob sua força. Cinco homens se uniram
contra ele, que ao estar desarmado, parecera um alvo melhor que os soldados: um
grave erro. Cadeiras se quebraram sobre ele, antes que o monstro atravessasse o
peito de dois de seus atacantes com as mãos nuas! Três tentaram atingi-lo com
facas, ao que ele agarrou um deles, para então destroçar seu pescoço com suas
presas, e segurou o braço do segundo, puxando o mesmo até arrancá-lo de seu
tronco. O terceiro foi pego pelo calcanhar, arrastado e então teve seu crânio
esmagado pelos sapatos reais.
Os
guardas se banqueteavam com o sangue de vítimas ainda vivas, algumas com partes
do corpo decepadas. Vlad caminhava entre eles banhado em sangue, enquanto
cercava as últimas de suas vítimas, totalmente acuadas. Aquilo era demais, além
do que eu temia ou poderia suportar! Corri, corri para longe daquele pesadelo,
corri em direção ao maldito quarto a que fui condenada! Corri ao som de gritos,
em meio as lágrimas, para longe daquilo tudo. Fechei a porta, me deitei na
cama, e abracei meu corpo que ainda tremia. E assim continuei por toda a noite,
o horror afastando meu sono. Após algumas horas, ouvi o som da porta abrindo, e
então sua voz sussurrando ao meu ouvido:
— Você
não é mais inglesa, Charlote. Você pertence a Valáquia, da mesma forma que
pertence a mim. Nunca mais se esqueça disso.
Após
aquele trágico jantar, meu espírito de luta se foi. Meu noivo era um monstro,
simbólica e literalmente. Ele não só poderia me controlar fisicamente, como
impor sua vontade sobre a minha. Ele beberia meu sangue sempre que quisesse, e
em breve me faria um demônio como ele. Eu estava em uma gaiola, dourada e
brilhante, mas ainda assim uma gaiola.
Conformada
com minha situação, decidi cooperar, ao menos até encontrar um meio de sair
daquele pesadelo. E os dias se passaram da seguinte maneira: Alice era minha
criada particular, me acompanhando e cuidando das minhas necessidades pessoais.
Ela era de falar pouco, e ainda que eu acreditasse que sua lealdade era
prioritariamente da Marjorie, era minha única confidente. Por falar em Marjorie,
sua presença era uma constante, sendo ela minha professora de romeno. Também ampliou
meus parcos conhecimentos sobre vampiros, aquilo que Vlad era, e também aquilo
que eu mesma seria um dia.
— Um vampiro é um amaldiçoado, um morto
condenado a beber do sangue dos vivos para permanecer nesse mundo. Condenado a
noite eterna, a luz do sol queima sua pele, até transformá-la em cinzas. O
sangue é sua fonte de poder, e cada vampiro aprende a usá-lo de uma forma
diferente, demonstrando uma grande variedade de dons sobrenaturais. Mas é certo
que todos eles tem certas características em comum: como capacidades físicas
sobre-humanas, e capacidade de curar-se de qualquer flagelo a eles infligido.
— E
Vlad é um vampiro, assim como outros nesse castelo. — Concluí eu.
— Sim
e não. — Marjorie me corrigiu. — Vlad III viveu há mais de duzentos anos, se
tornando uma lenda mesmo antes de receber a maldição. Ele não é um vampiro, ele é o vampiro. Alguns dizem que ele é
o vampiro original, criador de todos os que se seguiram. Existem formas de se
destruir um vampiro, mas Drácula está para além delas. Por volta de 1500 ele
foi destruído, mas sua sede de sangue e vontade de viver venceram a própria
morte, e ele retornou ao nosso mundo décadas atrás. Não há vampiro nesse mundo
capaz de vencê-lo, e nem arma alguma capaz de destruí-lo. Diante de uma força
como essa, minha querida, aqueles que são sensatos devem se aliar, ou se
submeter.
Marjorie
me explicou que oficialmente, Vlad III estava morto. Para o povo da Valáquia e
além, ele era Vlad V, um descendente do monarca. Sua semelhança as imagens e
quadros era facilmente explicada pelo sangue real, e sua fixação por empalamentos,
como inspiração do antigo ídolo, ou mesmo como fruto de uma reencarnação. Vlad
governava com mão de ferro, e era o horror de seus inimigos no campo de
batalha. Há séculos cristãos e muçulmanos lutavam pelo controle daquelas
terras, Vlad lutou antes, e lutava novamente agora.
Uma
noite caminhei ao seu lado por um vale de corpos empalados, após uma campanha
militar bem sucedida. A visão era de gelar a alma, com centenas de soldados
inimigos pendurados em hastes, alguns cuja madeira atravessava do ânus a boca,
visões que ainda hoje povoam meus pesadelos. Mais de uma vez levei as mãos a
boca, para suprimir o enjoo.
— O
que vê, Charlote? — Me perguntou ele.
—
Vejo uma monstruosidade. A morte...e o horror. — Respondi, enojada.
—
Você vê com olhos de mulher, e sente com estômago de donzela. Pois eu, vejo poder! Meus inimigos olham
para os corpos de seus pares, e temem. E o medo deles, Charlote, é a minha
força.
Em
outra oportunidade, o confrontei quanto ao resultado de seu último decreto.
Dezenas de pessoas simples, empaladas, num quadro horripilante de se contemplar.
— E
quanto ao seu próprio povo? — Questionei, aborrecida. — E quanto aos velhos,
mulheres e crianças que vejo pendurados diante do seu castelo. Acaso, são seus
inimigos?
— Governar
é derramar sangue, Charlote. Quase sempre o sangue de inimigos, mas as vezes, o
sangue do próprio povo. Governar consiste na arte de saber quando e como o
sangue deve ser derramado. E de quem. No fim, tudo se resume a sangue. — Ele
disse, me puxando para perto de si. — E hoje, minha amada, eu desejo o seu.
Ele
bebeu de mim, como na noite em que o conheci, e como em outras noites que se
seguiram a ela. Mas nunca como da primeira vez. Bebia o suficiente para que eu
me sentisse mais fraca e sonolenta, mas nunca até a inconsciência. A
experiência era sempre um misto de dor e prazer, confundindo meus sentidos...me
fazendo desejá-lo. E isso só aumentava o meu ódio. Suas mãos passeavam pelo meu
corpo, e seus lábios beijavam meu pescoço, já regenerado por seu próprio
sangue. Tentei lutar, me afastando dele, do monstro carniceiro, do demônio que
me escravizou. Não poderia e nem iria desejá-lo, ele podia ter meu sangue, mas
não teria meu corpo.
Até
aquele momento.
— Esqueça o ódio, Charlote. — Ele
me disse, olhos nos olhos enquanto me beijava. — Não veja o monstro, veja o homem.
Aquilo
foi o suficiente.
Eu o
desejava, nunca neguei isso. Aquele homem era belo, ainda que mais velho, seu
corpo de guerreiro exercia uma forte atração sobre a garota recatada que sempre
fui. A cada vez que ele me sugava eu lutava contra meus instintos para me
afastar dele, tentava lembrar do mal que ele fizera e continuaria a fazer, mas
agora era diferente. Suas palavras eram uma ordem. Não para me entregar, apenas
para facilitar o processo. Ao esquecer o que ele era, pude ceder aos meus
desejos mais íntimos, o beijando com paixão e o puxando mais para mim. Eu o
queria, eu o desejava, e o teria naquela noite. E assim foi.
Foi
uma experiência nova, e algo que abalou completamente nossa relação a partir
dali. Eu me sentia dividida, desejando e odiando aquele homem terrível,
querendo tê-lo...e querendo matá-lo. Nas vezes seguintes, ele não precisou mais
usar seu dom das trevas. As coisas simplesmente aconteciam, eu simplesmente
cansei de lutar contra mim mesma.
—
Está próximo. Dentro de dois meses, celebraremos nossa união diante da Igreja e
do povo. — Disse ele, ao meu lado na cama, ambos nus.
— ...
e então, você me fará como você, não é? — Perguntei, tentando não pensar sobre
o que isso representava. — Você tirará minha vida.
Ele
se deitou sobre mim, e beijando meus lábios, disse:
— Lhe
darei a eternidade, minha amada. — Suas mãos em meu cabelo, de forma carinhosa.
— Lhe darei o poder com que sempre sonhou.
Eu lhe entreguei meu corpo naquela noite.
Mas minha mente estava longe.
As
noites passavam, e eu sentia a forca cada vez mais próxima de se fechar sobre
meu pescoço. Saber que eu viraria um monstro como ele, que me alimentaria da
morte de outros, que jamais veria a luz do sol novamente... tudo isso me dava
um aperto no coração. Eu já dominava bem a língua romena, e fora apresentada
repetidas vezes para a sociedade da Valáquia, assim como para os nobres dos
outros dois principados húngaros: Transilvânia, ao norte, e Moldávia, ao leste.
Havia uma guarda pessoal para cuidar de minha segurança, formada por quatro
cavaleiros que se revezavam em seu serviço. Vlad era paranóico com tentativas
de assassinato contra mim, por isso, para além deles, contava com um poderoso vampiro
para me guardar. Seu nome era Peter.
Ele
era alto, não tanto quanto seu senhor, mais chegava perto. Aparentava ter entre
vinte e cinco e trinta anos, de cabelos negros, curtos e bem aparados, barba
feita, olhos verdes e um aspecto geral sempre sério. Diferente de seus
subordinados, Peter usava apenas uma armadura parcial, que protegia partes mais
vulneráveis. Outra diferença era o mosquete, a arma de fogo da época (lenta,
mais muito poderosa), que levava presa as costas. Ele também portava uma espada
e outras lâminas menores. Sua postura para comigo era sempre gentil e
respeitosa, e eu o achava muito bonito, ainda que não compartilhasse esse
pensamento nem mesmo com Alice.
Ele
era o preferido de Vlad, Marjorie dizia que isso se devia em parte a ele ter
sido um dos primeiros vampiros criados por ele, e diferente dos outros, ter se
mantido fiel, e vivo. Peter era antigo, e o mais poderoso vampiro após o Drácula,
devido a isso e a seu histórico honrado, tinha a total confiança de seu mestre.
Na noite em que me decidi, em que enfim aceitei a única saída possível ao
casamento e posterior transformação, eu estava sozinha.
Eu não
chorava. Na verdade, me sentia calma e decidida. Me sentei na janela do meu
quarto, como já havia feito outras vezes antes. Eu olhava para aquele céu de
nuvens escuras, sentindo as gotas de chuva que sobre mim caiam. Os céus
choravam, mas eu não. Charlote Berthory seria dona do seu destino mais uma vez.
Uma última vez. Pensei em minha tia Matilda, imaginando o que ela pensava da
sobrinha que a abandonou de uma hora para outra. Se ela chegaria um dia a saber
de minha morte...se meus pais saberiam. De olhos fechados e coração a mil, eu
me joguei daquela janela. Um voo livre por um céu negro e chuvoso.
Não,
não a morte. Eu buscava a liberdade.
E de certa forma, naquele momento, eu sai
de minha gaiola dourada.
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