quarta-feira, 11 de maio de 2016

Vampira Charlote - Parte I


Eu escrevo.

Escrevo para todos, e para ninguém. Escrevo para meus fantasmas, e também para mim mesma. Escrevo para vivos e mortos. Escrevo na tentativa de aliviar a dor que carrego, minha eterna maldição. Escrevo na esperança de ser lida em um tempo em que me revelar não represente uma ameaça... ou seja, um tempo que nunca virá.

Como disse antes, escrevo para ninguém.

Minha história começa há alguns séculos, mais precisamente, em 1670. Eu era uma jovem de dezoito anos, inexperiente, inocente e ansiosa por descobrir o mundo! Sim, tola, como todos os jovens são.    

— Me chamo Charlote, Charlote Berthory. — Disse eu, cumprimentando aquela elegante mulher, receosa de cometer alguma gafe quanto a etiqueta dos ingleses. — E é um prazer conhecê-la, senhora Williams.

Após um tempo que pareceu uma eternidade, e um olhar que parecia me escrutinar até a alma, ela sorriu e respondeu:

— Encantada, Charlote. Mas por favor, me chame apenas de Marjorie, pois espero que possamos aproveitar um pouco a companhia uma da outra.

Marjorie...a mulher que mudaria minha vida para sempre.


Nosso encontro se deu um ano após minha chegada a Inglaterra. Nasci e cresci no reino da Irlanda, terra dos meus pais e antepassados, mas ao chegar aos dezoito, fui enviada para o reino inglês com uma missão: auxiliar minha tia na administração de seus negócios, para posteriormente assumi-los. Matilda Bennett era uma mulher solitária, sem esposo ou herdeiros. Uma vez que minha educação foi concluída em nosso reino, estava pronta para aprender com ela, o membro mais rico de nossa decadente família. O que para os meus pais representava tanto a retomada do antigo prestígio da nossa casa, quanto a possibilidade de um bom casamento para sua única filha.

Nossa... como eles estavam errados.

Titia vivia em York, cidade antiga, e um centro de comércio na época. Ela era a mais velha das irmãs, tendo já seus quarenta e seis anos, e herdando os negócios de seu falecido marido. Justiça seja feita, a mulher era uma negociadora nata! Quando seu marido se foi, não deixou sequer uma quinta parte de todas as posses que ela acumulou. Foi sua mente afiada, junto a sua presença de espírito, o que multiplicou a riqueza. E era isso, mais que qualquer outra coisa, que eu buscava aprender com ela.

Matilda era uma mulher rígida, endurecida pela morte de um marido e de dois filhos pequenos. Minha rotina a partir do momento em que cheguei aquele país, incluía acordar cedo e dormir tarde. Eu a acompanhava em tudo, observando e aprendendo aquilo que podia. Entre viagens de uma canto a outro da cidade, reuniões de negócios e administração de recursos, pouco tempo restava para fazer amizades ou me divertir. Por isso mesmo fiquei tão animada com a festa daquela noite, pois era minha melhor chance de adentrar na sociedade das jovens inglesas. 

Eu usava um belo vestido, assim como um colar caríssimo, presentes de minha tia. O vestido era mais ousado que o usual, com um decote na altura dos seios, o que atraia alguns olhares que me faziam perguntar-me, porquê, afinal, deixei que titia me fizesse usá-lo. Passei as horas seguintes sendo apresentada a garotas fúteis, de olhar esnobe e sorrisos falsos. Minha origem estrangeira, somada a má fama de Matilda na alta sociedade, pareciam ser motivo para manter cada uma daquelas bonecas de cera afastada de mim.

Apesar de tudo, no fundo eu dava graças a Deus por isso.

Titia fazia questão de repetir que na verdade era minha aparência que as fazia se contorcer de inveja. Na época não tinha noção disso, mas sem falsa modéstia, hoje sei que ela estava certa. Meus longos cabelos negros presos em coque, com finas mechas que chegavam a altura dos seios, deixavam livre a visão de meu corpo. O vestido também fazia sua parte, realçando minhas curvas, e destacando os seios, além de contrastar sua cor violeta com a cor dos meus olhos, grandes, expressivos e negros, como a noite mais escura. Eu apenas sorria com as palavras dela, me sentindo mais confiante.

E após horas de tédio, eu a vi.

Marjorie Williams era bastante respeitada na sociedade inglesa, o que parecia um tanto contraditório para mim. Pois assim como eu, ela era estrangeira, francesa, diziam. E assim como titia, era uma mulher ativa, pois seu marido estava acamado há alguns anos, ficando ela a frente da maior parte de seus negócios. Sem dúvida alguma, de todos ali, ela era a única pessoa que valia a pena conhecer. E foi o que fiz, dessa vez, sem minha tia como porta-voz.

Esperei que ela estivesse sozinha para me apresentar, e fiquei surpresa com a forma amigável com que me tratou, diferente da frieza formal contra a qual havia dado de cara até aquele momento. Marjorie era adorável! Me confidenciou ter trinta e cinco anos, embora eu mesma não lhe desse mais de trinta. Era pouco mais alta que eu, corpo esguio e elegante, com cabelos castanho claros em um penteado complexo, e joias chamativas. Tinha olhos profundos e ar cínico, como se não levasse nada realmente a sério.

Passamos o resto da noite conversando sobre uma série de coisas, ri como não ria desde que fui forçada a abandonar minhas amigas na Irlanda. Em boa parte do tempo, ela me dizia coisas sobre as pessoas da festa, seus podres e indiscrições, coisas que me deixavam no mínimo chocada.

— Aquela jovenzinha ali, o que sabe sobre ela? — Ela perguntava, olhando com descrição.

— ...Isabella, não é? — Respondia eu, já bebendo um pouco mais do que exigia a etiqueta. — Sei que é de uma família respeitável da cidade. Metida, recatada e parece ter influência sobre as amigas.

— O que a aparência não revela e os pais não sabem, minha querida, é que ela já passou pela mão de metade dos jovens nobres de York, além de alguns não tão jovens. — Ela sussurrava, enquanto provava um doce fino. — Já lhe dei ervas para eliminar barriga mais vezes que posso me lembrar.

— É, cada uma com seu talento. — Respondia, pasma. Em algumas horas eu já descobrira o suficiente sobre aquela sociedade “decente e religiosa”, para que quando falasse com um deles, precisasse me decidir entre rir ou vomitar.  

Eu ouvia cada palavra com atenção. Alguém poderia pensar que aquilo se tratava de simples fofoca, mas eu percebia o que realmente significava: conhecimento. A senhora Williams tinha informações secretas sobre cada indivíduo da elite, coisas que poderiam comprometer sua honra e renome, e isso a fazia poderosa. Muitos lhe deviam todo tipo de favores, que ela cobrava ou não, conforme a conveniência. Só não fazia ideia do motivo para confidenciar-me esses segredos.

— Mas, se não tivéssemos defeitos, não sentiríamos tanto prazer em notá-los nos outros, não concorda? — Disse ela, com um sorriso.

— A senhora... digo, você, é sábia, Marjorie. — Disse eu, me sentindo uma simplória.

Na verdade essa frase não é minha, e sim de um filósofo da minha amada França. La Rochefocauld, seu nome. Dele também é a frase “Por mais que cuidemos de encobrir nossas paixões por aparências de piedade e honra, elas sempre aparecem através desses véus”.

— Infelizmente, não o conheço. — Confessei, sem graça.

— Imaginei que não, ele não é muito bem visto pela Igreja.

— Fui criada no catolicismo, como toda irlandesa. Mas a verdade é que nunca fui lá muito religiosa, sabe? Creio em Deus, mas as vezes as exigências da igreja parecem tão...opressivas!

— Há verdades e mentiras em sua religião, minha querida, assim como em todas as outras. Mas o sobrenatural é real. A verdade, é que seja cristã ou pagã, o exterior é apenas a primeira de muitas camadas de uma pessoa, e de tudo o mais. — Ela disse, com olhos que pareciam sugar minha alma. — Se víssemos aquilo que se esconde sob as máscaras, ficaríamos todos horrorizados.

As palavras dela permaneceram em minha mente pelos dias que se seguiram. Minha tia não gostava da Marjorie, assim como não gostou de me ver tão à vontade com ela. Porém não oferecia qualquer motivo razoável para essa postura.

— Há algo naquela mulher... algo de errado. Não sei explicar, eu apenas sei. — Ela dizia, o que obviamente não me convencia.

Estava discutindo com um entregador quando a reencontrei. Era uma tarde fria, e ela se cobria com um grosso casaco de peles, quando parou sua charrete diante de mim. Eu que estava com roupa, mãos e rosto sujos de conferir caixas de mercadorias, fiquei um tanto envergonhada ao me deparar com aquela mulher, tão majestosa quanto antes.

— Charlote, minha querida. Como é bom vê-la nessa tarde monótona! — Disse ela, sorrindo gentilmente. — Já terminou seus afazeres?

— Sim, Marjorie. — Respondi, enquanto limpava as mãos em um pano limpo. Evitando encará-la, envergonhada. — Logo voltarei para casa.

— Oras, venha, eu lhe darei carona. — Ela dizia, batendo no banco para que eu lá eu me sentasse. — Verei como uma grave ofensa uma recusa de sua parte.

Eu apenas sorri, derrotada. Mas na verdade, estava ansiosa por revê-la. Marjorie era uma figura que exercia um certo fascínio sobre as pessoas que a rodeavam, e era realmente difícil contrariar suas vontades. Conversamos durante todo o caminho, que pareceu passar muito rápido! Ao avistar a mansão de minha tia, tomei coragem para fazer o pedido em que vinha pensando desde aquela noite.

— Marjorie, eu... gostaria de aprender mais com você. Não tenho o que reclamar da educação que recebi em minha terra, e tenho aprendido muito sobre o mundo dos negócios, com minha tia. Mas a verdade é que seus modos, a profundidade de suas palavras, sinto que posso aprender a enxergar o mundo através de novos olhos com você. Sinto que posso ser...

Ela me interrompeu, segurando minhas mãos com firmeza.

— Não diga mais nada, querida. Há algo de valioso em você, Charlote, algo a ser lapidado. Serei sua amiga, assim como tutora, nos conhecimentos e mistérios desse mundo.

Eu sorri em resposta, um sorriso cheio de felicidade. A abracei forte, como a uma amiga, a amiga que ela se mostrou a mim, e também como minha mestra.

E minhas aulas logo começaram.

Duas noites por semana eu visitava o casarão dela. Com vastos jardins, ele era impressionante, não devendo nada para as mansões da alta nobreza.  Por dentro era luxuoso e aconchegante, com algumas obras de arte e objetos finos. Haviam ainda cômodos reservados, que guardavam uma impressionante coleção de imagens e símbolos religiosos, desde santos católicos, o Cristo e a Virgem, até deuses hindus e chineses, coisas que me faziam alternar entre a reverência, a curiosidade e o temor.

Ela me confiava escritos de pensadores que desafiaram a autoridade da igreja, do Papa e dos reis. Me ensinando a questionar muito do que aprendi como certo. Me iniciou também no ocultismo, em crenças antigas, provenientes de povos pagãos. Eu temia que se titia descobrisse, não me permitisse dedicar tanto tempo a companhia de alguém de quem ela não gostava. E nisso estava certa. Assim que soube, proibiu-me veementemente de frequentar a casa de minha amiga.

Mas meu desejo de desbravar esse novo mundo superava meu medo de broncas ou castigos, e continuei na companhia de Marjorie uma vez por semana, as escondidas, até minha tia descobrir minha desobediência. Ela ameaçou me enviar de volta para a casa dos meus pais, o que me encheu de medo. O que eles diriam de uma filha que após tanto tempo longe, é enxotada de volta?

Enviei um bilhete para minha tutora, informando sobre o acontecido. Para minha surpresa, a resposta não se deu através de um papel. Na noite seguinte, lá estava Marjorie: pernas cruzadas e olhar confiante, na sala de visitas de minha tia, as duas bebendo. Titia tinha um aspecto amável, ostentando um sorriso gentil em direção a nossa convidada. Achei tudo muito estranho, inacreditável até.

— Sente-se conosco, querida. — Ela disse, dando tapinhas no lado vazio do sofá. — É hora de discutirmos com sua generosa tia os novos termos de nossa convivência.

Eu permanecia em choque enquanto Marjorie recitava calmamente suas exigências, enquanto minha tia aceitava a tudo sem pestanejar, concordando sobre a importância de tudo aquilo para mim. Agora eu poderia frequentar a casa de minha amiga todas as noites da semana. Não só isso, quando necessário, poderia dormir lá. Eu teria menos trabalho, e poderia escolher quando acompanhar Matilda em viagens, e apenas para locais dentro da cidade.

Nada daquilo fazia sentido. Durante todo período em que morei com minha tia, vi como ela era persuasiva, teimosa e difícil de dobrar. Por que naquele momento ela aceitava a tudo com um sorriso no rosto, eu não fazia ideia! E pior, um sorriso que estranhamente parecia sincero. Aliás, ela sorriu mais vezes naquela noite que durante todo o ano em que eu estava com ela.

Marjorie... o que aconteceu lá dentro? — Perguntei, ao acompanhá-la até a porta. — Aquela mulher não pode ser minha tia, o que você colocou na bebida dela?

— Charlote, amiga querida. Esse nosso mundo esconde segredos que você ainda não está pronta para entender. — Ela disse essas palavras, abraçando-me ao final. — Mas confie em mim, apenas fiz sua tia ver a situação de uma nova forma, os meios não são importantes nesse momento.

Ela subiu na charrete, um sorriso no rosto enquanto me dizia.

— Abra sua mente, e um dia poderá fazer coisas muito maiores que essa.

Eu olhava para aquela mulher partindo, com meu coração acelerado. Não apenas palavras, ela detinha poder. O poder de dobrar os outros a sua vontade...e esse poder um dia seria meu. Eu sorri, animada com a perspectiva do que estava por vir.

Eu era inocente...inocente e jovem.

Desde aquele dia, titia jamais colocou qualquer empecilho quanto a minha amizade com ela. Foram dois anos, dois anos de aprendizado e encantamento. Todas as noites eu estava com ela, sua companhia era divertida e instigante, não podia sequer pensar que houvesse pessoa mais interessante e experiente que ela, por todo a Europa. Estudei música, literatura, artes e história. Me tornei mais culta que qualquer outra jovem da cidade, e com o apoio dela, passei a ser respeitada por todas aquelas que antes me destrataram. E cortejada, repetidamente. Mas estava concentrada demais no meu aprendizado, e como ela mesma me dizia, não havia tempo para dedicar a um relacionamento e suas muitas formalidades.

Por falar nisso, não foram poucas as vezes que a vi ao lado de belos homens com quem viria a se deitar. Alguns jovens, outros mais maduros, alguns musculosos, outros de porte comum. Não foram poucas as vezes também, que eles me olharam com desejo, alguns até mesmo transformando seus pensamentos em convites. Seria hipocrisia dizer que nunca me senti tentada, pois muitas vezes meus instintos clamaram alto! Mas a verdade é que eu sonhava com um bom casamento, com um homem a quem eu amasse de verdade. Não poderia me entregar apenas por prazer, dando as costas ao meu futuro.

Você pode estar se perguntando sobre o marido de Marjorie, e como ela poderia ter tantos amantes sem o seu conhecimento, ou mesmo o motivo de eu nunca antes tê-lo mencionado. O motivo era simples: ele não estava morto, mas pouco além disso se podia dizer dele. O senhor Gillian Williams tinha seus quarenta anos, mas aparentava o dobro. Pálido, frágil, e com a sanidade comprometida, não saia de sua cama para nada, raramente sendo visto em público. Eu mesma não devo tê-lo visto mais que cinco vezes em todo aquele tempo. Para a sociedade, Marjorie era uma boa esposa, fiel e honesta, mas na vida real, vivia como uma mulher livre. Eu apenas ria, ela era mesmo uma figura única.

Eu só não sabia o quanto.

Nesse tempo todo eu dava tudo de mim, ela não poderia ter aluna mais aplicada! Aprendi bastante sobre ocultismo, sobre o mundo dos espíritos e como eles podem interagir com os vivos. Com o decorrer do tempo, me tornei mais sensível a essas presenças: não podia vê-las, mas conseguia senti-las. Também aprendi muito sobre o uso de ervas curativas, venenosas, abortivas e outras. Minha mestra era dona de uma vasta coleção de unguentos, poções e elixires, e aquilo que ela mesma não sabia fazer, importava. Li sobre lendas de criaturas demoníacas que aterrorizaram nossas terras e além, bebedores de sangue, comedores de carne, mortos que se levantavam, bestas monstruosas... coisas que ela jamais me dizia se eram ou não reais, mas que me pedia para manter a mente aberta. Em raras ocasiões, Marjorie fazia rituais de sangue. Quase sempre, meu sangue era exigido neles. Eu fazia um leve corte na palma da mão, que depois se curava com estranha velocidade!

— Seu sangue é poderoso, Charlote. — Minha mestra dizia, com olhar sombrio. — Há nele uma força capaz de subjugar ao mais poderoso dos homens.

Em certo momento de meu aprendizado, desabafei sobre meu desejo de ir além disso, de provar de poder real, assim como ela era capaz. Dominar suas vontades, assim como a vi fazer, não apenas com minha tia, mas muitas outras vezes, com muitas outras pessoas. Marjorie descobria coisas sobre pessoas, coisas que ninguém mais teria como descobrir. Pessoas e espíritos se submetiam a sua vontade, e eu ansiava por isso. Ela me olhava com seus olhos impossíveis de ignorar, me dizendo que ainda não era hora, mas que quando eu estivesse pronta, o poder viria a mim de forma mais rápida do que poderia sonhar. Aquilo me confortava. Me tornei uma dama respeitável da sociedade, era jovem, bonita e culta, mas desejava algo que nada daquilo poderia comprar.

E tudo mudou, na noite do meu aniversário de vinte e um anos.   

Eu não pude deixar de notar como as aulas estavam menos extensas nas últimas semanas. Como fechávamos todos os tópicos relevantes das diferentes ciências, como ela me pedia apresentações em que demonstrasse os talentos aprendidos e aperfeiçoados nos últimos anos, sempre sob um olhar orgulhoso e palmas de satisfação. Eu estava claramente encerrando meu aprendizado com ela, o que significava que o poder real estava cada dia mais perto.

— Esses pouco mais de dois anos lhe fizeram bem, minha querida. — Disse ela, girando-me pela mão. — Está ainda mais bela que quando a conheci, coisa que julgava impossível!

Era o dia anterior ao meu aniversário, e estava sorridente como uma criança, apenas pensando no grande dia que viria. Como eu já especulava, haveria realmente algo de muito especial na minha data.

— Durma bem, minha amiga. Reserve o dia para cuidar de si mesma e de sua beleza. — Ela me disse, segurando em minhas mãos. — Amanhã à noite uma grande surpresa lhe aguarda, e desejo que esteja em sua melhor aparência para recebê-la.

Eu a abraçava e agradecia, extasiada pela expectativa.

Na noite seguinte, lá estava eu no belo casarão. Não pude deixar de notar que os criados haviam sido dispensados por aquela noite, com exceção de uma jovem, que permaneceu para me auxiliar. Toda casa estava mais bonita que nunca, assim como sua dona. Marjorie estava com um vestido negro que lhe caia muito bem, ostentando suas melhores joias e com um olhar satisfeito. Quando me recebeu, fez questão de me abraçar e beijar minha face, me guiando até o quarto onde encontraria um belíssimo vestido vermelho. Ele era bordado a ouro, com intrincados símbolos que não era capaz de decifrar. Tinha um decote generoso nos seios e costas, assim como uma abertura para as pernas que me deixaram com um sorriso sapeca na face.

As inglesas morrerão se eu sair daqui com isso, pensei.

Haviam também joias, mais belas e brilhantes que quaisquer outras que eu já tivesse visto, do tipo que nem Marjorie havia usado.

Após um longo banho e outros cuidados, estava pronta.

Eu usava aquele vestido impossível, vermelho e dourado, salientando o que havia de mais desejável no meu corpo, do alto daqueles caríssimos sapatos. Meus cabelos arrumados em um belo penteado, presos por uma tiara encantadora, e brincos, um colar e anéis completando o figurino. Sentia-me bela, como nunca antes.

Meu coração pulsava forte, enquanto descia as longas escadas. Podia sentir algo de místico... uma força, uma presença intensa, que parecia cobrir toda aquela casa. Mesmo após tudo que li, vi e ouvi, ainda parecia a mesma menina inocente que chegara na Inglaterra, anos atrás. Estava tão concentrada que sequer olhei para o salão enquanto descia, fazendo isso apenas após chegar ao último degrau.

Majorie estava de pé, sorridente, ao lado de um homem desconhecido. Ele estava sentado na poltrona principal da casa, de pernas cruzadas e chapéu a frente do corpo. Aparentava algo entre quarenta e quarenta e cinco anos, mas vale dizer que os anos não lhe fizeram mal. De longos cabelos, negros como os olhos, e ostentando grossos bigodes que formavam uma espécie de cavanhaque, ele tinha um certo charme. Vestia um terno, preto como todo o resto, e me fitava firmemente.

— Charlote, querida, quero que conheça uma pessoa. — Disse minha amiga, enquanto me trazia pela mão, até pararmos diante do homem.

Ele se ergueu lentamente, demonstrando ser um homem alto e de ombros largos. Seu terno era perfeitamente alinhado, e com botões que não pude deixar de notar, eram semelhantes aos símbolos bordados em meu vestido. Algo em seu porte e olhar, me fez sentir que não era um homem comum.

— Este é Vlad III, príncipe da Valáquia. — Ao dizer isso, minha mestra se curvou, ao que fiz o mesmo, ainda que abalada pela surpresa.

— Vlad III...como o Vlad Tepes? — Perguntei, relembrando minhas aulas de história.

Naquele momento ele abriu seu enorme sorriso, se aproximando mais.  

— ... não “como o” Tepes, mas o próprio. — O ouvi dizer, com sua voz firme e grave, o que me deixou confusa. Afinal, Vlad Tepes havia morrido há mais de um século.

Ele estendeu a mão, passando seus dedos suavemente pelo meu rosto, até chegar aos lábios. Recuei por instinto, mas como em um passe de mágica ele estava atrás de mim, meu corpo se chocando contra o dele, que fechou seus braços, me envolvendo de forma íntima.

— ...alteza, devo pedir que me trate com a dignidade com que são tratadas as damas inglesas. — Disse eu, tentando parecer firme. Tentando também não pensar em como um homem poderia ser tão rápido.

— Ela é mesmo uma criaturinha adorável! — Ele disse após me soltar, parecendo se divertir com tudo aquilo. — Você não exagerou em um só detalhe, Marjorie.

Olhei para minha mestra e amiga, que apenas sorria para mim. Se aquilo era um tipo de teste, eu deveria demonstrar que estava acima de simples provocações.

Buscava me recompor, mas havia algo de opressivo em tudo aquilo. A força que sentia sobre a casa...parecia mais intensa, quanto mais próxima eu ficava daquele homem. E o modo como me olhava... como um lobo diante da ovelha.

— Perdoe-me, alteza. — Disse eu, enquanto me convencia que ele não se atreveria a algo além daquilo. — Sou Charlote Berthory, e é uma honra conhecê-lo.

— Sei quem é, Charlote. Aliás, sei tudo sobre você. — Ele dizia, enquanto me rodeava, com as mãos para trás. — Devo dizer que Marjorie fez um excelente trabalho com você nesses últimos anos.

— Ela é uma boa mestra. — Eu disse, braços cruzados. — E eu uma boa aluna.

— E o tempo de aprender comigo acabou. — Disse Marjorie, sorriso no rosto. — Parabéns, Charlote! Hoje você está pronta. Pronta para ser a nova princesa da Valáquia.

— ... que brincadeira é essa? — Eu perguntava, olhando para minha amiga e me afastando daquele homem que apenas me olhava com o mesmo sorriso estampado no rosto. Um sorriso sombrio... um sorriso com...presas?

— É poder que deseja, Charlote? — Ele perguntava, andando de modo imponente em minha direção, com aqueles dentes afiados. — Eu o tenho, e posso dá-lo a quem for digno dele.

Havia algo de muito sombrio naquele homem. Seus olhos exibiam a íris vermelha, suas presas como as de um animal, ele era algo que eu não sabia explicar. Algo de que se deve fugir.

— Afaste-se, fique longe de mim! — Gritei, enquanto sacava uma velha adaga que adornava uma das mesas, colocando-a a frente do meu corpo.

— Deseja riqueza? Eu sou um príncipe! — Ele dizia, enquanto continuava avançando. — Quer uma vida longa?

Ele estava quase sobre mim, quando minhas mãos se moveram por reflexo, desferindo uma punhalada na altura do seu ventre. O sangue espirrou no meu vestido vermelho, sujando minhas mãos. Levantei os olhos desesperada, desejando encontrar algum sinal de que não assassinei um homem. Esperando que não fosse a morte o passaporte para minha ascensão.

Para o meu espanto, ele sorria! Sorria enquanto segurava meu rosto com firmeza, me encarando nos olhos.

— ...posso lhe dar a eternidade. — Ele disse.

Ele retirou o punhal cheio de sangue, o girou no ar com habilidade, e depois lambeu o sangue da lâmina. O sangue que logo parou de fluir do ferimento, enquanto ele me fitava com aqueles olhos vermelhos, vermelhos como o sangue em sua língua.

— Sou uma Berthory, sou uma mulher livre. — Afirmei, de punhos fechados e olhos lacrimejantes. — Não sou uma escrava para ser vendida ou dada a alguém. Sou dona do meu destino, não vocês!

— Você não é dona de nada, menina estúpida. — Disse minha mestra, minha amiga, como quem explicasse algo óbvio para uma criança. — Drácula, o demônio imortal, a deseja. Sua tia, sua família, seus negócios, seus planos...tudo é passado.

— Minha doce criança, o que pode fazer a ovelha perante o dragão? — Disse ele, rasgando meu vestido em um movimento impossível dos dedos.

Levei as mãos a frente dos seios, tentando preservar o que ainda havia de dignidade. Com lágrimas de ódio, pela humilhação e traição, cuspi minhas últimas palavras daquela noite.

— Não sou... uma ovelha.

Eles se entreolharam, e sorriram.

— Tem razão, de fato, é uma mulher. — Ele disse, deliciando-se com a visão do meu corpo. — E já é hora de tratá-la como uma.

Ele me puxou para junto de si, seus braços uma força invencível. Senti sua língua lamber meu pescoço, contrariando meus protestos e lágrimas. E então a dor! Uma dor aguda no pescoço, enquanto ele cravava suas presas em mim. Me senti como uma ovelha com os dentes do lobo no pescoço, sem qualquer chance de salvação. Mas não só a dor... junto dela, veio o prazer, todo meu corpo foi tomado por uma sensação inebriante, um calor e desejo, algo que jamais experimentara antes. Dor e prazer misturados, como em uma dança a qual não podia resistir ou abandonar. Parte de mim queria afastá-lo, outra parte queria tê-lo, e isso apenas aumentava meu ódio!

Após um tempo que pareceu uma eternidade, ele me soltou. Senti meu corpo fraco pender, a consciência querendo abandonar-me. E então os braços de Marjorie me sustentando.   

— Durma, Charlote Berthory. Minha noiva, minha criança. — Disse ele, enquanto limpava meu sangue de sua boca. — É uma longa viagem até a Valáquia.

Ouvi seus passos se afastando, assim como minha consciência.

Esse foi o fim da vida que conhecia, e com a qual sonhava.

E também, o início de minha tragédia.
   
  


        

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