quinta-feira, 14 de maio de 2015

Capítulo 5 - A Santa e o Demônio


É noite, próximo a um hotel de beira de esquina e preço baixo, Paul aguarda pacientemente por seu alvo. O professor está em um carro esporte, parado atrás de algumas árvores. Com luzes apagadas e binóculos, ele identifica um veículo no estacionamento que bate com a descrição que busca.

Até que não foi má ideia rondar os poucos hotéis na entrada de Bleak Hill, ele pensa.

A chuva cai tediosamente, as horas se arrastam, apenas uma garrafa de café o mantém alerta. E, é claro, a expectativa da ação. Geralmente seria o Golem a cuidar de alguém perigosa como essa caçadora, mas dentro dos limites de Bleak Hill, essa não é uma opção. Até hoje as ações do Golem foram em outras cidades, e ele não quer levantar atenção desnecessária para esse lugar no meio do nada.

Após algumas horas de espera, seu alvo dá as caras! Saindo de dentro do hotel surge a mulher: grande e de sobretudo marrom, cabelos muito negros, rosto largo e sem guarda-chuva. Ela anda até o carro, atenta aos arredores e carregando uma bolsa de viagem.

Hora de começar a caçada, ele pensa, enquanto guarda o café.



[...]


Dias antes.

Na sala de aula, vazia após o fim da sua última aula, o professor assiste atentamente ao vídeo que seu contato na polícia enviou. Nele, uma figura alta de sobretudo marrom, botas pretas e cabelo negro arromba a porta da casa de sua futura vítima. Paul dificilmente pensaria que se trata de uma mulher se os relatórios não dissessem isso, as imagens desfocadas e o porte físico dela em nada ajudam na dedução.

São 6h00 da manhã quando a mulher entra e 6h09 quando sai. Segundo o relatório policial, testemunhas alegam ter ouvido troca de tiros de dentro da casa, segundo as imagens do vídeo, pouco após a saída da assassina a residência pega fogo. Ao menos quatro vítimas são confirmadas como dela: uma em Manchester, três em York. Pelos dados coletados, os alvos seguem o padrão esperado por Davis, indivíduos pouco sociáveis, de vida noturna e dos quais os vizinhos sabiam pouco. Ou seja: todos vampiros.

Após o vídeo, Paul observa fotos de um apartamento modesto em que a suspeita se hospedava em um bairro no centro de York. A polícia estourou o local, mas não antes dela pôr fogo em tudo. Entre textos bíblicos em latim, crucifixos, terços e imagens de santos católicos, foram encontrados fragmentos de fotos das vítimas e um pedaço de mapa do Reino Unido. O mapa continha marcações que coincidem com as localizações das últimas vítimas, e outras desconhecidas.

O investigador trabalha com a hipótese de uma serial killer fanática religiosa, mas Paul sabe a verdade.

Desculpem amigos policiais, mas o alvo é meu.


[...]


De volta a caçada.

O carro parte e começa a perseguição silenciosa, Paul segue com as luzes apagadas e no limite da distância que o binóculo lhe permite, felizmente, as estradas da cidade são previsíveis.

Após alguns minutos de perseguição sob a chuva, o carro para no estacionamento de um restaurante recém inaugurado que promete vender comida de boa qualidade e trazer um pouco de refinamento à cidade.

Não vai durar muito, ele pensa.

Ela entra, Paul aguarda cinco minutos e sai do carro. Depois se deixa molhar de chuva (ignorando o guarda-chuvas no porta-malas) e vai andando calmamente até o restaurante.

Deu trabalho achar você, hora de ser criativo, decide.


[...]


Noite anterior.

O expediente acabou em sua loja de beira de estrada, e o vendedor de armas se dirige ao carro, pensando apenas em ir para casa, tomar banho, jantar e ver tv com a mulher. Ele abre a porta do carro e, quando começa a entrar, tem a sensação de estar sendo observado. O homem tenta sutilmente sacar uma pistola que espera não ter que usar, enquanto sua e treme de cima à baixo.

Infelizmente para ele, o invasor não lhe deixa tempo de decidir se usa a arma ou não. Em um movimento rápido ele é puxado para trás com força, sem entender como, já está desarmado! Uma dor alucinante no braço que segurava a arma indica que o processo de desarme incluiu a quebra da mão. Um vislumbre rápido no retrovisor revela uma face de pedra, sinistra o suficiente para fazê-lo congelar de medo!

Após alguns instantes de silêncio, com uma mão de cor escura e áspera fechando sua boca e um cano gelado de arma encostado em sua nuca, uma música suave começa a preencher o veículo. Música hebraica, ele pensa. A música do Golem, ele percebe. Tremendo de ponta a ponta, Steve se recorda das reportagens que leu sobre o misterioso assassino, um justiceiro cruel que tem matado criminosos brutalmente.

Fale ou morra. ... você a viu? — E o assassino apresenta uma foto da mulher de sobretudo, a fanática matadora de vampiros.

Steve junta todas as forças que lhe restam para responder de forma clara, tentando não gaguejar ou se molhar no processo.

— Sim! Essa mulher veio aqui ontem, comprou munição e foi embora! — Ele fala, com esperança de que a resposta certa possa salvá-lo.

...fale mais. — A voz do Golem, ainda mais ameaçadora.

— Ela veio aqui, p-por volta de 16h00...não, 17h00! Uma mulher grande, mal encarada e meio bruta, queria munição de escopeta, e uma pistola de grosso calibre com munição também. Ela...ela falava pouco, disse que estava com pressa! Tirou o dinheiro do bolso como quem não se importava e nem fez questão de saber se tinha troco. Ela...ela, botou gasolina no carro também, uma picape verde mal conservada.

A música ainda tocando, um longo silêncio se seguiu em que o pobre homem imaginava de que forma encontrariam seu corpo no dia seguinte, se os jornais com seu cadáver na capa ao menos teriam boas vendas.

Tá vendo mãe, você dizia que eu nunca faria nada importante. Tá ai, vou ser morto pelo Golem, nada dessas mortes ridículas por câncer ou ataque cardíaco. Sou especial, não é mesmo?, pensa o homem, enquanto teme a proximidade da morte.

Onde ela foi?

Steve sente o suor escorrendo, enquanto fala as palavras que sabe, podem ser suas últimas:

Norte! Direção de Bleak Hill! — ele grita sem querer, contando os segundos para o mascarado começar a carnificina.

Você não falará a ninguém sobre mim. O que aconteceu aqui foi um acidente. 

Antes que ele possa abrir os olhos em alívio, sente uma dor forte na cabeça, e tudo fica escuro de repente. Horas depois, o vendedor iria acordar com a cabeça cheia de sangue e um aviso rabiscado com seu próprio sangue no vidro do carro: Acidentes podem voltar a acontecer”.


[...]


Dentro do restaurante, momento presente.

O lugar é bonito: boa mobília, empregados bem vestidos e uma banda de jazz tocando ao fundo. Das quinze mesas, treze estão ocupadas, o espaço é retangular e felizmente a mulher está justamente sentada ao lado de uma mesa vazia. Paul se senta na mesa ao lado e pede para o garçom trazer um Uísque. Ao redor dos dois se veem famílias e principalmente casais, Paul deduz que o lugar está cheio por conta das promoções de inauguração, e pela proximidade do aniversário da cidade, o que sempre traz turistas.

A mulher tem algo em torno de 1,80m, ombros largos e porte masculino. Cabelos e olhos muito negros e pele branca. Ela não tirou o sobretudo, mesmo estando molhado, e aos poucos ele percebe que mesmo tentando fingir distração com um jornal local e uma taça de vinho, os olhos da caçadora se fixam em uma mulher específica.

Sentada à quatro mesas de distância, uma bela mulher de cabelos castanhos, olhos da mesma cor, vestido vermelho e joias fala ao celular, sozinha em uma mesa sutilmente mais bem posicionada que as outras. Ele se pergunta se ela seria uma vampira, e enquanto bebe, resolve que é hora de agir.

— Posso me sentar? — Ele pergunta, ao mesmo tempo já sentando ao lado da caçadora. — É meio-deprimente beber sozinho numa noite como essa, você não acha?

Ela parece surpresa, e logo fica desconfiada. É uma mulher grande e forte, não é do tipo que alguém acharia bonita, e sabe bem disso.

— Não, não pode. Acho melhor para nós dois que o senhor volte para sua mesa. — Diz, mirando um olhar ameaçador que faria outros homens obedecerem sem pensar muito.

— Qual é? Nós dois estamos aqui solitários e encharcados, será que não podemos ao menos dividir uma garrafa e aproveitar uma boa companhia? — Paul exibe seu melhor sorriso conquistador, e percebe que ela fica sem jeito e levemente ruborizada.

Não deve estar acostumada a lidar com homens, principalmente a serem gentis com ela, conclui.

De repente ela segura o pulso do professor e o vira para procurar algo nele, não encontrando o que procura, solta-o e parece desconcertada pela atitude.

— Perdão... achei que fosse... — E fica calada em seguida, voltando a olhar na direção da mulher de vestido.

Ela procurava a tatuagem no pulso, a marca daqueles que servem voluntariamente aos vampiros em troca da chance de se tornarem um deles. 

— Você é meio violenta, hein? — Ele fala, tom brincalhão. — Agora que me machucou será obrigada a jantar comigo. Garçom!

Ela fica sem saber o que fazer enquanto Paul faz um pedido para si e estende o menu para ela, prometendo pagar o que ela quiser comer.

— Por que está fazendo isso? — Ela pergunta, desnorteada.

— É preciso algum grande motivo para dividir o pão com alguém? — E sorri.

Paul sabe escolher as palavras certas, e acaba finalmente quebrando o gelo e arrancando um sutil sorriso dela.

— Eu...se você... digo — Ela pigarreia, e então diz sem jeito. — Sou uma madre católica ordenada, acho importante que saiba, antes de me pagar algo. — E desvia o olhar dele.

Paul toca suavemente o pulso tenso da mulher, e afeta um sorriso compreensivo.

— Ora madre, sou formado em Psicologia e História da Religião, acho que podemos ter uma boa conversa. — Paul estende a mão em cumprimento. — Paul Davis, e qual o nome dessa nobre mulher que divide um jantar comigo?

— Madre Pietra Ferdinari, fico grata, professor.

Ela escolhe enfim a comida, sempre mantendo alguma vigilância sobre seu alvo, agora não mais no celular. Eles começam uma discussão sobre história da religião, as ações da Igreja Católica e a ascensão do cristianismo no Ocidente. Também partem para questões psicológicas envolvidas na fé e no comportamento religioso. Ambos percebem que o outro domina bem o assunto tratado, embora tendendo para lados opostos.

Paul fingi só agora notar a reportagem de capa do jornal que a madre tem na mesa, ela fala sobre Adam Tepes e sua vinda à Bleak Hill.

— Vejam só, o Conde Drácula já até ganha capas de jornal. — Ele diz, enquanto analisa a reação dela.

— O que sabe sobre esse tal Adam Tepes, professor Davis? — Ela pergunta, bastante interessada, enquanto come uma coxa de frango sem muito pudor.

— Eu já conversei com ele pessoalmente, sabe? É um sujeito que esbanja dinheiro, sempre muito formal. Tem um sotaque estranho, só é visto a noite e está sempre cercado de gente que parece idolatrá-lo. Como se... — Ele finge sentir vergonha. — esqueça, é bobagem minha.

— Não, fale por favor. — Ela diz, segurando firme em seus ombros.

— Tudo bem, eu quero dizer que as pessoas que o rodeiam parecem fazer tudo por ele, como se estivessem dominadas, entende? Sei que isso deve ser paranoia da minha parte, e que os boatos sobre ele ser o Conde Drácula são simplesmente por conta do cara ser dono do castelo. Mas as vezes tem coisas que nos fazem pensar sobre o que realmente é verdade nesse mundo.

— Tem razão, professor, há mistérios que cabem somente a Deus e outros que os homens podem alcançar quando o buscam com coração sincero.

Eles trocam sorrisos, e então o inesperado acontece. Adam Tepes cruza a entrada do restaurante e vai em direção a Jeanne Hilton, falam algo, beija a mão dela e senta-se.

— Parece que Deus ouviu suas preces madre Pietra, eis ai o Conde Drácula em pessoa diante de nós! — E aponta para a mesa, sorridente. — É sua melhor oportunidade de conhecer o sujeito.

Paul fica incrivelmente surpreso com sua sorte, pode cuidar de dois problemas de uma só vez.

Hoje será uma noite para ficar na história, pensa ele.




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