sexta-feira, 8 de maio de 2015

Capítulo 4 - Velhos Pecados


A chuva cai torrencialmente do lado de fora do castelo, trazendo um som, cheiro e atmosfera que deixam Adam nostálgico.

Marie adorava noites chuvosas, lembra.

Ele está de pé na sacada, o vento frio soprando em seu rosto e levantando os longos cabelos negros. Atrás de si, o quarto em que viveu como casado há algumas centenas de anos atrás, um antigo quadro restaurado como única lembrança desse tempo feliz. Desde que voltou do sono eterno, o lugar lhe traz um misto de tristeza e conforto, esperança e desilusão. Pois este é tanto o local em que Marie morreu, como aquele em que conheceu Claire, passado e presente se fundem nele, e o futuro, é exatamente aquilo que o vampiro teme.

Será que a Claire também gosta de noites assim? O quanto ela tem da mulher que conheci, afinal?

— Creio que o senhor já postergou o bastante esse momento. — fala o mordomo Lincoln, parado como uma estátua alguns metros atrás do vampiro. — Há três noites que não se alimenta, isso não pode continuar.

O homem se move para o lado, dando visão para a cama e as três mulheres deitadas nela. Elas aparentam ter algo entre vinte e cinco e trinta anos, usam roupas decotadas e maquiagem forte, e no momento, estão inconscientes. Prostitutas, ele deduz.

— É, acho que sim. — Adam exibe um sorriso nervoso enquanto olha para o trio, seus corpos convidam ao pecado, mas tudo o que ele quer delas é o sangue. E não poderia ser diferente, principalmente ali.

— Não queria ter que chegar a esse ponto, mas o senhor não me deixou escolha. — O homem guia lentamente o vampiro até suas vítimas, fazendo aquilo que sabe ser necessário. — O senhor deixou de caçar nas cidades vizinhas, recusa-se a beber dos moradores da cidade e somente a força aceitou meu próprio sangue, três noites atrás.

— Não esperei tantas décadas para vê-lo definhar e morrer. — Ele diz, com olhar firme e mão forte. E depois sai do quarto.

Adam se senta ao lado delas, belas mulheres que lhe venderiam de bom grado seus corpos, mas não seu sangue.

— Veja só, Claire! Seu bom salvador se aproveitará de mulheres indefesas, não sou melhor do que os homens a quem quase matei. — Presas de fora, um leve gemido de dor da primeira vítima, e o vampiro começa a perder-se no prazer sanguinolento.

... não, sou muito pior.


[...]

No salão de visitas do castelo, três homens e uma mulher aguardam protegidos da chuva a chegada de Adam. Sentados em largos sofás, e aquecidos por uma grande lareira, provam do conforto de seu anfitrião.

Eles trocam olhares e comentários, vez por outra com uma risada escandalosa ecoando pelo salão. A risada vem sempre de Wally Freeman, um homem enorme, que ocupa a maior parte de um sofá nada pequeno. Dono de longos cabelos e barba desgrenhados, seus pelos ruivos lhe conferem a aparência de um urso a ponto de sair de dentro das roupas humanas. Intercala entre comer, beber, fazer uma piada e rir; nessa ordem.

Dividindo o sofá com ele, está um idoso mal encarado. O velho se chama James Costner, de chapéu, face enrugada e olhos semicerrados, usa uma grossa jaqueta, mantendo as mãos apoiadas numa bengala, para lhe dar estabilidade. No sofá ao lado, Thomas Winnicott e sua filha, Claire. O homem segura o chapéu marrom na altura da barriga com uma mão, e com a outra, um charuto que fuma constantemente. De calças jeans e camisa de botões listrada, bate o pé com botas no chão, numa demonstração clara de impaciência. Cabelos loiros como os da filha, e barba da mesma cor (parcialmente grisalhos), possui porte atlético e roupas surradas.

Claire está vestida com um grosso casaco e uma toca de lã, encolhida mais pela presença do pai que por frio.

Jura que você vai ficar fazendo os velhos esperarem, Adam? Logo gente cabeça dura como eles?, se pergunta.

A garota envia uma mensagem de celular para o dono da casa, simples e direta: “Meu pai tá aqui, e vai comer nosso fígado se você continuar enrolando como uma princesinha. DESCE AGORA!!! Ò__ó ”.

Ela olha para o pai, que a encara inquiridoramente, ciente que ele já não gostou muito de saber que ela anda encontrando tanto com “um playboyzinho vindo do exterior”.

As fofocas voam mesmo nessa cidadezinha, mal sai com o Adam uma vez após a festa e até meus pais já estão sabendo, resmunga para si.

— Perdão pela demora senhores, imagino que pontualidade ainda é algo muito importante para os ingleses. — fala Adam Tepes, em um terno vermelho de grife, e um olhar que analisa cada detalhe da cena, detendo-se no sorriso zombeteiro da Claire.

— ... “ainda é importante”? — questiona o velho James Costner.

— Fiquei muito tempo fora da Inglaterra, convivendo com gente de outras culturas, foi o que quis dizer.  — Retruca Adam, se dando conta do deslize.

— Não dê bola pra esse velho rabugento Tepes, ele acredita mesmo que você é o Conde Drácula. — Fala Wally Freeman, enquanto aperta vigorosamente a mão do vampiro.

— Minha menina disse um bocado de coisas sobre você rapaz, vim aqui tirar algumas delas a prova. — diz, Thomas Winnicott.

— Claire é um doce, espero que o senhor não se decepcione. — ele responde.

Após um olhar de desprezo por parte de James Costner, Adam beija a mão de garota, tentando não pensar sobre o ato que cometera há tão poucos instantes.  

— Você é um idiota por fazer os velhos esperarem, agora mesmo que vai precisar de sorte pra sair inteiro dessa. — ela sussurra, entre risos.

— Bem vindos ao meu lar, senhores. — Ele diz, enquanto se senta na cadeira que Lincoln acaba de trazer. — Vamos então ao motivo real desse encontro. Falemos de negócios.

[...]

Duas horas depois, no mesmo castelo.

Wally Freeman já bebeu mais do que deveria ser humanamente possível, e bastante “animado”, cita números para seu anfitrião, que encarou como desafio acompanhar o homem na bebedeira. Todos olham para os dois se perguntando como pode o jovem estar sóbrio após tanto vinho.

— ...daí, como eu falei, tem uns dois anos que eu exporto carne pra capital, e desde ai o dinheiro só cresce! Não tem coisa mais certa pra tu gastar teu dinheiro não. — O sujeito seca outra garrafa de vinho caro, já ciente que será substituída por uma cheia, graças a um prestativo mordomo. — Ouça isso “Mepes”: mulher e vaca, sempre vai ter homem gastando dinheiro pra comer!

— Nada machista da sua parte, né, senhor Freeman? — reclama Claire.

A risada do homem ecoa por todo salão, constrangendo os presentes e fazendo a Claire jogar um salgadinho no olho dele. Depois encara Adam, sorrindo sem jeito.

— Pare de dar show, seu gordo bêbado! — Grita Thomas Winnicott, enquanto puxa a garrafa da mão do amigo. — Você já passou de todos os limites.

Após se livrar da garrafa, ele retoma a palavra.

— Eu respeito o fato da sua família ter feito a vida vendendo antiguidades garoto, mas vou pedir pra pôr na cabeça uma coisa: quando a crise aperta, um homem sempre vai preferir um bife à um quadro.

Adam observa tudo com atenção, e responde:

— Senhor Winnicott, lhe dou toda razão sobre algumas necessidades do homem terem prioridade sobre outras. — sei disso melhor do que ninguém, pensa ele. — Mas acredito que essa cidade já tenha homens o suficiente envolvidos com carnes e grãos.

— Quer vender o que então Tepes? Sangue!? — A frase vem do velho James, batendo a bengala no chão para dar ênfase.

Após esperarem o senhor Freeman terminar sua gargalhada de um minuto e meio, Adam brinca, encarando o homem:

— Não, senhor Costner, não acho que teria gente o suficiente interessada nisso, além de mim.

Adam se ergue e, andando pelo salão, discursa para seus convidados.

— Perdão senhores, mas para mim a questão vai além de ter lucro. Meu objetivo maior é fazer algo por essa cidade! Contribuir com algo que faça a diferença nesse lugar isolado, para os moradores de Bleak Hill.

— Falta um bom puteiro aqui, “Trepis” — resmunga o senhor Wally Freeman — As putas dessa cidade tão piores que minha mulher!

— ...na verdade, já tenho algo em mente. — Revela Adam.

— Chega de suspense homem, desembuche logo! — Reclama Thomas.

— Uma faculdade. — Adam diz, seguido por um longo silêncio, quebrado pela gargalhada estrondosa do homem-urso.

— Está de brincadeira, certo? — Pergunta James Costner, se inclinando em direção ao Adam e com olhar cético.

— De modo algum. O conhecimento é algo precioso, o trabalho da minha família com antiguidades sempre teve como objetivo maior manter o passado vivo. Através de uma faculdade posso não só manter esse passado, mas fortalecer as bases de um futuro. Garanto que uma faculdade aqui vai fortalecer o comércio da cidade, e que os moradores terão direito a bolsas especiais para fazer o curso que desejarem.

Lincoln observa seu estranho senhor, temendo pela decepção que imagina vir após o pronunciamento.

— Eu quis que fossem os primeiros a saber, senhores. Esse será um novo tempo em Bleak Hill. — Conclui Adam.

Claire Winnicott olha abismada para o homem por quem está apaixonada e que agora planeja criar uma faculdade numa cidadezinha.

Não sei se você é um idealista de bom coração ou só um milionário excêntrico, pensa ela.

Sem perceber, se pega segurando a cruz que ganhou dele e que usa por dentro do casaco.

Ou talvez eu saiba, reflete, só não entendo de onde vem tanta confiança em alguém que conheço há tão pouco tempo. Quem é você de verdade, Adam? E por que raios me sinto atraída por você, como uma mariposa pela luz?

Batidas de madeira no chão chamam a atenção para o idoso que reclama:

— Agora que já nos fez perder tempo ouvindo seus desvarios, vamos embora antes que o Conde decida beber nosso sangue! — O velho se ergue e começa a caminhar até a saída.

— Cale a boca, Costner! Como se alguém quisesse essa sopa rala que flui por baixo da sua pele borrachuda! — Diz Thomas, ajudando a erguer o amigo cambaleante.

Wally Freeman para diante do Adam e se escora nele, peso suficiente para esmagar um homem de força mediana, nada demais para alguém como ele. Então abraça o vampiro com fervor, e fala com bafo de bebida e lágrimas nos olhos:

— Gostei muito de você “Herpis”, se tem uma coisa que eu respeito nessa vida, é um homem que sabe beber!

— Na próxima continuamos, hoje o senhor foi o vencedor no vinho.

Thomas empurra o enorme homem e, colocando o chapéu, aperta a mão de Adam com firmeza.

— Considero uma baita duma tolice essa sua ideia de faculdade numa cidade dessas, mas respeito homens que pensam em algo além de dinheiro. Vamos torcer para que você não dê com os burros n'água, hein garoto.

— Não se preocupe, sei o que estou fazendo. — Diz o vampiro.

Ele vê o homem indo em direção ao amigo bêbado para guiá-lo até a saída, sente então uma mão suave em seu ombro e escuta uma voz doce e familiar.

— Parabéns, Adam, conseguiu sair inteiro dessa jaula cheia de cães raivosos. — O sorriso dela nunca deixa de mexer com ele, o reflexo de quem ela foi traz um impulso de jamais deixá-la sair de lá.

— Como acha que me sai, Claire?

— Deixe-me ver — Ela junta as mãos e começa a contar com os dedos — Ganhou o Wally Freeman com vinho, perdeu o velho James...

— E seu pai?

— Ele é durão, um homem do tipo antigo. Mas sinto que gostou de você, ele gosta de pessoas que... “gostam de pessoas”. — Um sorriso meigo e um beijo no rosto dele.

— Claire, anda logo!  

— Viu? Eu disse que ele era linha dura! — Risos — Hora de ir, senhor Adam Tepes.

Ele pega nas mãos dela e as beija suavemente.

— Cuide-se Claire, sei que temos nos visto pouco, mas prometo que isso vai mudar. Só estou resolvendo alguns problemas primeiro. — Mente ele, sua existência é o problema, e não há solução para isso. Quanto menos se verem, menor a chance dela perceber o que ele realmente é.

— Não esquenta, isso acaba deixando nossos momentos juntos melhores. — Ela responde, tentando reprimir seus instintos que desconfiam de homens sempre ocupados, e sem entender como pode desejar tanto permanecer ali.

Me sinto estranhamente bem aqui. Como se estivesse em casa, pensa ela, assustando-se com o próprio sentimento.

Adam observa os carros indo embora, através da sacada. Pensa sobre as pessoas que conheceu hoje, sobre como apenas um velho ranzinza, em meio a uma estudante de psicologia e dois homens experientes, parece enxergar o monstro que se esconde por baixo de um sorriso gentil. 


[...]


Na noite seguinte.

O vento sopra intensamente, a chuva molhando suas roupas e face, o fazendo sonhar que poderia assim tão facilmente lavar a culpa por todo o sangue que já derramou em séculos de existência. Daqueles que matou, daqueles de quem apenas bebeu, das centenas de vidas que o separam de um ser humano normal.

Ele então recua para o quarto, lá encontrando seu servo e confidente, o único em quem pode confiar — e ainda assim, quase um estranho.

Lincoln traz uma taça na mão, cheia de algo vermelho e viscoso: uma taça de sangue.

— É isso, então? — ele pergunta, temendo alimentar esperanças.

— Sangue de transfusão. Pode não ser tão bom como beber de prostitutas, mas ao menos não lhe deixará com a consciência pesada. — O homem sorri, entregando a taça ao seu mestre. — Eu diria que não é barato, mas considerando que o senhor deu dinheiro suficiente para aquelas damas da noite poderem largar aquela vida...  

Uma esperança! A medicina moderna descobriu como coletar e armazenar o sangue humano para transfusões futuras, uma forma de se alimentar sem causar mal a ninguém. Com isso, ficará um passo mais distante do monstro, um passo mais próximo da Claire.

Adam bebe! O medo de falhar faz o líquido descer com dificuldade pela garganta, o medo de que seu corpo morto rejeite esse sangue empacotado. No passado, ele viu vampiros de consciência pesada se voltarem para o sangue de animais para fugir da carnificina, uma atitude piedosa... e arriscada. O sangue de animais era rejeitado pelo corpo de muitos deles, e mesmo entre aqueles que conseguiam se adaptar, o passar do tempo os tornava cada vez mais fracos, até que no fim...

De repente, ele deixa a taça cair ao chão, agora vazia. Seus olhos, antes fechados, se abrem lentamente, cheios de um brilho novo. O brilho da esperança.

— Senhor, tenho um recado da senhorita Jeanne Hilton. — Fala Lincoln, entendendo a mudança. — Ela aceitou o convite.

— A vampira da festa... interessante. — diz Adam, sorridente e confiante. — Tenho que descobrir como anda o mundo dos vampiros no século XXI, Lincoln, preciso falar com essa mulher.



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