A
chuva cai torrencialmente do lado de fora do castelo, trazendo um som, cheiro e
atmosfera que deixam Adam nostálgico.
Marie adorava noites chuvosas, lembra.
Ele
está de pé na sacada, o vento frio soprando em seu rosto e levantando os longos
cabelos negros. Atrás de si, o quarto em que viveu como casado há algumas
centenas de anos atrás, um antigo quadro restaurado como única lembrança desse
tempo feliz. Desde que voltou do sono eterno, o lugar lhe traz um misto de
tristeza e conforto, esperança e desilusão. Pois este é tanto o local em que
Marie morreu, como aquele em que conheceu Claire, passado e presente se fundem
nele, e o futuro, é exatamente aquilo que o vampiro teme.
Será que a Claire também gosta de noites
assim? O quanto ela tem da mulher que conheci, afinal?
— Creio
que o senhor já postergou o bastante esse momento. — fala o mordomo Lincoln,
parado como uma estátua alguns metros atrás do vampiro. — Há três noites que
não se alimenta, isso não pode continuar.
O
homem se move para o lado, dando visão para a cama e as três mulheres deitadas
nela. Elas aparentam ter algo entre vinte e cinco e trinta anos, usam roupas
decotadas e maquiagem forte, e no momento, estão inconscientes. Prostitutas,
ele deduz.
— É,
acho que sim. — Adam exibe um sorriso nervoso enquanto olha para o trio, seus
corpos convidam ao pecado, mas tudo o que ele quer delas é o sangue. E não poderia
ser diferente, principalmente ali.
— Não
queria ter que chegar a esse ponto, mas o senhor não me deixou escolha. — O
homem guia lentamente o vampiro até suas vítimas, fazendo aquilo que sabe ser
necessário. — O senhor deixou de caçar nas cidades vizinhas, recusa-se a beber
dos moradores da cidade e somente a força aceitou meu próprio sangue, três
noites atrás.
— Não
esperei tantas décadas para vê-lo definhar e morrer. — Ele diz, com olhar firme
e mão forte. E depois sai do quarto.
Adam
se senta ao lado delas, belas mulheres que lhe venderiam de bom grado seus
corpos, mas não seu sangue.
—
Veja só, Claire! Seu bom salvador se aproveitará de mulheres indefesas, não sou
melhor do que os homens a quem quase matei. — Presas de fora, um leve gemido de
dor da primeira vítima, e o vampiro começa a perder-se no prazer sanguinolento.
— ... não, sou muito pior.
[...]
No
salão de visitas do castelo, três homens e uma mulher aguardam protegidos da
chuva a chegada de Adam. Sentados em largos sofás, e aquecidos por uma grande
lareira, provam do conforto de seu anfitrião.
Eles
trocam olhares e comentários, vez por outra com uma risada escandalosa ecoando
pelo salão. A risada vem sempre de Wally Freeman, um homem enorme, que ocupa a
maior parte de um sofá nada pequeno. Dono de longos cabelos e barba
desgrenhados, seus pelos ruivos lhe conferem a aparência de um urso a ponto de
sair de dentro das roupas humanas. Intercala entre comer, beber, fazer uma
piada e rir; nessa ordem.
Dividindo
o sofá com ele, está um idoso mal encarado. O velho se chama James Costner, de
chapéu, face enrugada e olhos semicerrados, usa uma grossa jaqueta, mantendo as
mãos apoiadas numa bengala, para lhe dar estabilidade. No sofá ao lado, Thomas
Winnicott e sua filha, Claire. O homem segura o chapéu marrom na altura da
barriga com uma mão, e com a outra, um charuto que fuma constantemente. De
calças jeans e camisa de botões listrada, bate o pé com botas no chão, numa
demonstração clara de impaciência. Cabelos loiros como os da filha, e barba da
mesma cor (parcialmente grisalhos), possui porte atlético e roupas surradas.
Claire
está vestida com um grosso casaco e uma toca de lã, encolhida mais pela
presença do pai que por frio.
Jura que você vai ficar fazendo os velhos
esperarem, Adam? Logo gente cabeça dura como eles?, se pergunta.
A
garota envia uma mensagem de celular para o dono da casa, simples e direta:
“Meu pai tá aqui, e vai comer nosso fígado se você continuar enrolando como uma
princesinha. DESCE AGORA!!! Ò__ó ”.
Ela
olha para o pai, que a encara inquiridoramente, ciente que ele já não gostou
muito de saber que ela anda encontrando tanto com “um playboyzinho vindo do exterior”.
As fofocas voam mesmo nessa cidadezinha,
mal sai com o Adam uma vez após a festa e até meus pais já estão sabendo,
resmunga para si.
— Perdão
pela demora senhores, imagino que pontualidade ainda é algo muito importante
para os ingleses. — fala Adam Tepes, em um terno vermelho de grife, e um olhar
que analisa cada detalhe da cena, detendo-se no sorriso zombeteiro da Claire.
— ...
“ainda é importante”? — questiona o velho James Costner.
— Fiquei
muito tempo fora da Inglaterra, convivendo com gente de outras culturas, foi o
que quis dizer. — Retruca Adam, se dando
conta do deslize.
— Não
dê bola pra esse velho rabugento Tepes, ele acredita mesmo que você é o Conde
Drácula. — Fala Wally Freeman, enquanto aperta vigorosamente a mão do vampiro.
— Minha
menina disse um bocado de coisas sobre você rapaz, vim aqui tirar algumas delas
a prova. — diz, Thomas Winnicott.
— Claire
é um doce, espero que o senhor não se decepcione. — ele responde.
Após
um olhar de desprezo por parte de James Costner, Adam beija a mão de garota, tentando
não pensar sobre o ato que cometera há tão poucos instantes.
— Você
é um idiota por fazer os velhos esperarem, agora mesmo que vai precisar de
sorte pra sair inteiro dessa. — ela sussurra, entre risos.
— Bem
vindos ao meu lar, senhores. — Ele diz, enquanto se senta na cadeira que Lincoln
acaba de trazer. — Vamos então ao motivo real desse encontro. Falemos de negócios.
[...]
Duas
horas depois, no mesmo castelo.
Wally
Freeman já bebeu mais do que deveria ser humanamente possível, e bastante
“animado”, cita números para seu anfitrião, que encarou como desafio acompanhar
o homem na bebedeira. Todos olham para os dois se perguntando como pode o jovem
estar sóbrio após tanto vinho.
—
...daí, como eu falei, tem uns dois anos que eu exporto carne pra capital, e
desde ai o dinheiro só cresce! Não tem coisa mais certa pra tu gastar teu
dinheiro não. — O sujeito seca outra garrafa de vinho caro, já ciente que será
substituída por uma cheia, graças a um prestativo mordomo. — Ouça isso “Mepes”:
mulher e vaca, sempre vai ter homem
gastando dinheiro pra comer!
—
Nada machista da sua parte, né, senhor Freeman? — reclama Claire.
A
risada do homem ecoa por todo salão, constrangendo os presentes e fazendo a
Claire jogar um salgadinho no olho dele. Depois encara Adam, sorrindo sem
jeito.
— Pare de dar show, seu gordo bêbado! —
Grita Thomas Winnicott, enquanto puxa a garrafa da mão do amigo. — Você já
passou de todos os limites.
Após
se livrar da garrafa, ele retoma a palavra.
— Eu
respeito o fato da sua família ter feito a vida vendendo antiguidades garoto,
mas vou pedir pra pôr na cabeça uma coisa: quando
a crise aperta, um homem sempre vai preferir um bife à um quadro.
Adam
observa tudo com atenção, e responde:
—
Senhor Winnicott, lhe dou toda razão sobre algumas necessidades do homem terem
prioridade sobre outras. — sei disso melhor do que ninguém, pensa ele. — Mas
acredito que essa cidade já tenha homens o suficiente envolvidos com carnes e
grãos.
—
Quer vender o que então Tepes? Sangue!?
— A frase vem do velho James, batendo a bengala no chão para dar ênfase.
Após
esperarem o senhor Freeman terminar sua gargalhada de um minuto e meio, Adam
brinca, encarando o homem:
— Não,
senhor Costner, não acho que teria gente o suficiente interessada nisso, além
de mim.
Adam
se ergue e, andando pelo salão, discursa para seus convidados.
— Perdão
senhores, mas para mim a questão vai além de ter lucro. Meu objetivo maior é
fazer algo por essa cidade! Contribuir com algo que faça a diferença nesse
lugar isolado, para os moradores de Bleak Hill.
— Falta
um bom puteiro aqui, “Trepis” — resmunga o senhor Wally Freeman — As putas
dessa cidade tão piores que minha mulher!
—
...na verdade, já tenho algo em mente. — Revela Adam.
—
Chega de suspense homem, desembuche logo! — Reclama Thomas.
— Uma
faculdade. — Adam diz, seguido por um longo silêncio, quebrado pela gargalhada
estrondosa do homem-urso.
— Está
de brincadeira, certo? — Pergunta James Costner, se inclinando em direção ao
Adam e com olhar cético.
— De
modo algum. O conhecimento é algo precioso, o trabalho da minha família com
antiguidades sempre teve como objetivo maior manter o passado vivo. Através de
uma faculdade posso não só manter esse passado, mas fortalecer as bases de um
futuro. Garanto que uma faculdade aqui vai fortalecer o comércio da cidade, e
que os moradores terão direito a bolsas especiais para fazer o curso que
desejarem.
Lincoln
observa seu estranho senhor, temendo pela decepção que imagina vir após o
pronunciamento.
— Eu
quis que fossem os primeiros a saber, senhores. Esse será um novo tempo em
Bleak Hill. — Conclui Adam.
Claire
Winnicott olha abismada para o homem por quem está apaixonada e que agora
planeja criar uma faculdade numa cidadezinha.
Não sei se você é um idealista de bom
coração ou só um milionário excêntrico, pensa ela.
Sem
perceber, se pega segurando a cruz que ganhou dele e que usa por dentro do
casaco.
Ou talvez eu saiba, reflete, só não
entendo de onde vem tanta confiança em alguém que conheço há tão pouco tempo.
Quem é você de verdade, Adam? E por que raios me sinto atraída por você, como
uma mariposa pela luz?
Batidas
de madeira no chão chamam a atenção para o idoso que reclama:
—
Agora que já nos fez perder tempo ouvindo seus desvarios, vamos embora antes
que o Conde decida beber nosso sangue! — O velho se ergue e começa a caminhar
até a saída.
— Cale
a boca, Costner! Como se alguém quisesse essa sopa rala que flui por baixo da
sua pele borrachuda! — Diz Thomas, ajudando a erguer o amigo cambaleante.
Wally
Freeman para diante do Adam e se escora nele, peso suficiente para esmagar um
homem de força mediana, nada demais para alguém como ele. Então abraça o vampiro
com fervor, e fala com bafo de bebida e lágrimas nos olhos:
— Gostei
muito de você “Herpis”, se tem uma coisa que eu respeito nessa vida, é um homem
que sabe beber!
— Na
próxima continuamos, hoje o senhor foi o vencedor no vinho.
Thomas
empurra o enorme homem e, colocando o chapéu, aperta a mão de Adam com firmeza.
— Considero
uma baita duma tolice essa sua ideia de faculdade numa cidade dessas, mas
respeito homens que pensam em algo além de dinheiro. Vamos torcer para que você
não dê com os burros n'água, hein garoto.
— Não
se preocupe, sei o que estou fazendo. — Diz o vampiro.
Ele
vê o homem indo em direção ao amigo bêbado para guiá-lo até a saída, sente
então uma mão suave em seu ombro e escuta uma voz doce e familiar.
— Parabéns,
Adam, conseguiu sair inteiro dessa jaula cheia de cães raivosos. — O sorriso
dela nunca deixa de mexer com ele, o reflexo de quem ela foi traz um impulso de
jamais deixá-la sair de lá.
— Como
acha que me sai, Claire?
— Deixe-me
ver — Ela junta as mãos e começa a contar com os dedos — Ganhou o Wally Freeman
com vinho, perdeu o velho James...
— E
seu pai?
— Ele
é durão, um homem do tipo antigo. Mas sinto que gostou de você, ele gosta de
pessoas que... “gostam de pessoas”. — Um sorriso meigo e um beijo no rosto
dele.
— Claire, anda logo!
—
Viu? Eu disse que ele era linha dura! — Risos — Hora de ir, senhor Adam Tepes.
Ele
pega nas mãos dela e as beija suavemente.
—
Cuide-se Claire, sei que temos nos visto pouco, mas prometo que isso vai mudar.
Só estou resolvendo alguns problemas primeiro. — Mente ele, sua existência é o
problema, e não há solução para isso. Quanto menos se verem, menor a chance
dela perceber o que ele realmente é.
— Não
esquenta, isso acaba deixando nossos momentos juntos melhores. — Ela responde,
tentando reprimir seus instintos que desconfiam de homens sempre ocupados, e
sem entender como pode desejar tanto permanecer ali.
Me sinto estranhamente bem aqui. Como se
estivesse em casa, pensa ela, assustando-se com o próprio sentimento.
Adam
observa os carros indo embora, através da sacada. Pensa sobre as pessoas que
conheceu hoje, sobre como apenas um velho ranzinza, em meio a uma estudante de
psicologia e dois homens experientes, parece enxergar o monstro que se esconde
por baixo de um sorriso gentil.
[...]
Na
noite seguinte.
O
vento sopra intensamente, a chuva molhando suas roupas e face, o fazendo sonhar
que poderia assim tão facilmente lavar a culpa por todo o sangue que já
derramou em séculos de existência. Daqueles que matou, daqueles de quem apenas
bebeu, das centenas de vidas que o separam de um ser humano normal.
Ele
então recua para o quarto, lá encontrando seu servo e confidente, o único em
quem pode confiar — e ainda assim, quase um estranho.
Lincoln
traz uma taça na mão, cheia de algo vermelho e viscoso: uma taça de sangue.
— É
isso, então? — ele pergunta, temendo alimentar esperanças.
—
Sangue de transfusão. Pode não ser tão bom como beber de prostitutas, mas ao
menos não lhe deixará com a consciência pesada. — O homem sorri, entregando a
taça ao seu mestre. — Eu diria que não é barato, mas considerando que o senhor
deu dinheiro suficiente para aquelas damas da noite poderem largar aquela
vida...
Uma esperança! A
medicina moderna descobriu como coletar e armazenar o sangue humano para
transfusões futuras, uma forma de se alimentar sem causar mal a ninguém. Com
isso, ficará um passo mais distante do monstro, um passo mais próximo da
Claire.
Adam bebe! O
medo de falhar faz o líquido descer com dificuldade pela garganta, o medo de
que seu corpo morto rejeite esse sangue empacotado. No passado, ele viu
vampiros de consciência pesada se voltarem para o sangue de animais para fugir
da carnificina, uma atitude piedosa... e arriscada. O sangue de animais era
rejeitado pelo corpo de muitos deles, e mesmo entre aqueles que conseguiam se
adaptar, o passar do tempo os tornava cada vez mais fracos, até que no fim...
De
repente, ele deixa a taça cair ao chão, agora vazia. Seus olhos, antes
fechados, se abrem lentamente, cheios de um brilho novo. O brilho da esperança.
—
Senhor, tenho um recado da senhorita Jeanne Hilton. — Fala Lincoln, entendendo
a mudança. — Ela aceitou o convite.
— A
vampira da festa... interessante. — diz Adam, sorridente e confiante. — Tenho
que descobrir como anda o mundo dos vampiros no século XXI, Lincoln, preciso
falar com essa mulher.
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