sexta-feira, 8 de abril de 2016

Capítulo 21 - Sem Medir Consequências



O Golem está dentro.

Do alto da parte superior da velha igreja, em uma área interligada por colunas e sacadas ornamentadas, o mascarado encontra seu alvo: Mandy Duncan. A adolescente está nua, grossos braceletes de prata prendendo seus pulsos, tornozelos e pescoço, de cabeça baixa e postura ereta e iluminada apenas pela luz de velas, enquanto é banhada por um homem vestindo um manto escarlate. O banho consiste em um jarro cheio de sangue sendo lenta e cerimonialmente derramado sobre a cabeça da jovem, em um ritual profano. O homem tem cabelos negros, pele muito branca e unhas proeminentes. Seu manto possui adereços dourados, bordados em ouro e formando desenhos intrincados. O Padre, com certeza. Próximos aos dois, quatro garotas portando armas, metade com lâminas, metade com fuzis, formando um círculo em volta do religioso e seu sacrifício.

O padre vampiro parece encerrar seu ritual, por um momento afastando-se da jovem estática, que agora é vestida por uma das garotas. A chance que ele esperava. O Golem salta em direção a refém, parando a meio metro do chão (seguro por um cabo com arpão), em seu movimento de descida, quebrando o pescoço da inimiga mais próxima, para em seguida ser puxado de volta pelo cabo enquanto pega a loba pela cintura. Tudo muito rápido, para espanto dos presentes. Uma vez de volta ao alto e com seu prêmio, o Golem ativa a música: sua melodia característica, vinda de gravadores posicionados em diferentes trechos do caminho trilhado. O Padre apenas observa enquanto a dupla de fuzil dispara na direção do invasor e a jovem de faca corre ao auxílio da amiga moribunda.


Paul utiliza as colunas e paredes como defesa, agachando e saltando, enquanto recolhe o arpão e com a outra mão dispara na direção das jovens, em poucos instantes as eliminando sem dificuldade. Então percebe que não vê mais o padre, apenas uma garota largando a faca e correndo para longe dele. Após os tiros cessarem ele se ergue, carregando uma jovem sem reação rumo ao lugar de onde veio e usando o cabo para chegar ao outro lado do aposento em um só movimento. Só não esperava que a igreja fosse do nada tomada por morcegos. Dezenas deles, vindos de todos os lados, empurrando o mascarado e sua protegida. Paul busca se manter firme diante daquele vendaval sinistro, equilibrar-se enquanto mantêm o corpo da garota em segurança.

— Você está atrapalhando. — São as palavras da Mandy, enquanto empurra seu salvador para a queda.

O Golem é pego de surpresa, caindo de costas no chão. Ao se dar conta das dores nas costas e sangue na boca, só por puro reflexo consegue desviar de uma lâmina dourada que desce velozmente em direção ao seu pescoço. Então contempla seu agressor: o Padre, portando uma espada dourada de lâmina curva e larga (uma cimitarra de ouro), enquanto as pequenas e barulhentas criaturas aladas dançam em volta deles.

— Ele despertará hoje, isso já foi determinado. — O vampiro diz.

Paul contempla a menina sentada de onde o jogou, seu olhar perdido, em uma espécie de transe místico. Então se ergue, ao mesmo tempo sacando suas lâminas prateadas.

Esqueça a garota. O único sacrifício hoje, será você. — Diz o Golem.


[...]


A vida é cheia de surpresas, diriam alguns. De fato, após serem poupadas por um vampiro que tinha todo motivo do mundo para matá-las, as jovens se sentiam realmente abençoadas enquanto corriam por dentro da igreja. E pouco importava que ela estivesse profanada e cheia de cadáveres em posições blasfemas. Naquele momento, elas tinham toda a certeza de que Deus olhava por elas e teve piedade de suas pobres almas perdidas. Algumas com ferimentos graves, outras apenas assustadas, somente elas conseguiram sair do covil. Dez ao todo. Foi com lágrimas nos olhos que a primeira abriu as portas do templo, disparando em direção a um portão de ferro, ainda fechado. Não foram mortas pelo vampiro, não foram mortas pelo Padre, nem mesmo pelos lobos. Abençoadas, sem dúvida. Ou ao menos foi isso que pensaram.

Quem poderia prever que assim que se aglomerassem diante do portão, um caminhão desgovernado arrombaria as portas de ferro? E que das quatro que escaparam de serem atropeladas pelo gigante de carga, nenhuma escaparia dos tiros que os capangas restantes dispararam contra o caminhão? É, realmente a vida é cheia de surpresas.

— Tem ninguém no volante, não! — Grita um rapaz alucinado, surpreso pela ausência do cadáver de um motorista (após descarregarem tanta munição, ele não esperava alguém vivo).

O caminhão não apenas arrombou os portões, ele prosseguiu em disparada até se chocar contra a porta da igreja. Obviamente, deixando um rastro medonho de corpos juvenis pelo caminho. A paisagem agora é composta de dez corpos, seis esmagados ou jogados violentamente a distância, outros quatro perfurados por “fogo amigo”. Três rapazes circulam o veículo, dois deles recarregando as armas, a procura do invasor. Um outro se apoiando no caminhão, tremendo de medo, e vomitando de nojo. Esse é o primeiro a sumir.

— Tá de sacanagem, né? — Pergunta o garoto de cabelos longos e cacheados, após perceber que seu amigo passando mal não está mais respondendo.

Um barulho de passos pesados se faz ouvir perto do caminhão, fazendo o rapaz disparar feito louco na direção do suposto invasor. Ele faz uma careta quando ouve o grito de um dos colegas que estava naquela direção sendo baleado por sua culpa. Não que ele se importe realmente. A promessa do Padre de transformá-los nunca foi para todos, então quanto menos gente na competição, melhor, ele pensa. Enquanto recua para mais perto do último colega armado e vivo, não percebe a aproximação silenciosa de um vulto branco. Ao menos não antes de ser tarde demais.

O último garoto apenas balança a arma nervosamente na direção do lobisomem, enquanto se afasta rumo ao portão. Rumo à sobrevivência. O lobo branco o observa tentando lutar por sua vida, na esperança de que o monstro esteja saciado. O que não é o caso. O lobo está pronto para o abate... mas então para. Que o covarde viva, há um cheiro bem mais interessante no ar para o lobo. O cheiro da matilha.

O terreno é grande, com o portão arrebentado e o caminhão bloqueando a entrada da igreja, o lobo branco com focinho tingido de vermelho decide caçar. Mandy é sua prioridade, resgatar a garota com vida e provar que não falhou com ela. Que não deixou alguém que se tornou tão importante em tão pouco tempo morrer. Pois caso ela morra... isso acabará com o Jimmy, acabará com a Emma... e com ele também. Mas a matilha é a chave, ele sabe. Através deles o lobo descobrirá como salvar a garota, voltará a olhar naqueles olhos, a ver aquele sorriso.

Após algum tempo seguindo o cheiro, ele encontra o que procura: cinco barracas montadas no vasto terreno, rodeadas de garrafas de cerveja vazias por toda parte. Andy Valentine avança lenta e silenciosamente, como um predador rodeando a presa. O garoto quer respostas...e algo mais.    


[...]

Pouco antes, Malcon.

Rondando a área em forma humana, o líder da matilha anda com ar imponente. Seu porte físico, pistolas e sorriso cínico mantendo afastados quaisquer dos jovens delinquentes, desejosos por tornarem-se vampiros. Há uma grande quantidade de gente vigiando cada perímetro, o próprio Boris está rondando, mas se tem uma coisa que a experiência ensinou ao lobo foi a manter os olhos bem abertos. Para sua surpresa, começa a sentir cheiro de sangue próximo de entulhos e sucata. Após vasculhar, para sua decepção, depara-se com o cadáver de alguém familiar: Boris. Um corpo grande e nu, com a mandíbula partida e o pescoço exibindo um grande corte, para além de outros ferimentos igualmente impressionantes. Boris, um dos membros fundadores, o segundo mais poderoso do bando e o único com mais força física que ele próprio.

— Quem foi o filho da puta que fez isso contigo, hein parceiro? — Malcon pergunta, enquanto fecha os olhos do velho companheiro.

Ele examina o lugar de arma em punho, e após encontrar outros cadáveres humanos, decide agir. 

— ... Peg, tudo ok ai? — Ele liga para a mulher que dará à luz seu filho, seu herdeiro.

— ...Tudo um saco. — ela responde.

— Bota no viva-voz pra o Rickon ouvir. — Após alguns instantes. — Temos companhia. O grandão tá morto e alguém tá fazendo a festa aqui dentro, usando facas de prata e arma com silenciador. O vampirão tá lá embaixo...sinal de que não é ele. Vocês dois fiquem preparados, eu vou a caça, mas logo passo ai.

— ... o Boris, sério? — Peg pergunta, assustada. — Puta merda, Mal, já perdemos o Jeff e a vadia nesse trabalho, agora você me diz que deitaram o Boris!?

— Não é hora de chorar, minha flor. E você, cuida da minha mulher e do meu filho até eu voltar, ouviu, Rickon?

— Pode confiar em mim, Malcon, o futuro mascote da matilha tá seguro. — O garoto diz, voz tensa.

O líder do bando então se livra das roupas, armas e equipamentos humanos, abraçando sua animalidade, se transformando novamente em um monstro de pesadelos infantis. Ele uiva, alto o bastante para os vampiros dentro da igreja ouvirem, alto o bastante para encher de confiança uma mulher grávida e seu jovem amigo, alto o bastante para afastar a tristeza por aqueles que morreram sob seu comando. E é nesse exato momento que um caminhão destrói os portões e se choca contra as portas da igreja. Iniciando um inferno de tiros e mortes, denunciando a chegada do Andy.    

[...]

O Golem ataca ininterruptamente seu inimigo. As lâminas se chocam, iluminando a semi-escuridão no ritmo de uma dança sinistra, contemplável apenas por olhos feitos para a noite. Olhos como os de um vampiro, ou de alguém com visor noturno na máscara. Os morcegos continuam rodeando a ambos, as vezes interferindo no meio da batalha, para o desprazer de Paul Davis. Direita-esquerda, esquerda-baixo-cima, esquerda-direita...Paul alterna a sequência de golpes, dando tudo de si, apenas para ver cortes superficiais que sequer são capazes de diminuir o ritmo do sacerdote. Ele se força a prosseguir, chegando ao limite das forças, ao limite do fôlego... quando finalmente diminui a velocidade.

Um golpe certeiro na altura da coxa faz o mascarado rilhar os dentes de dor, sufocando um grito que sabe, apenas deliciará seu oponente. A lâmina venceu a proteção reforçada e tirou sangue...o suficiente para que o vampiro o provasse, para que ele o sentisse.   

— Humano. Um mero ser humano. — Ele diz, enquanto lambe a lâmina. — Que sangue delicioso você tem, humano. Agora eu o desejo para mim.

A velocidade, a força, tudo nesse vampiro é além do que Paul esperava encontrar. Então é essa a força real de um vampiro antigo? Todo o treinamento, todos os recursos, serão apenas para acabar assim? Ele se pergunta, enquanto tenta ignorar o som do enxame que domina o ambiente, as pequenas criaturas que muitas vezes se chocam contra ele, o ar superior do monstro de olhos arregalados que o encara como a uma presa.

O demônio recomeça o ataque. Os golpes descem com velocidade e força, não buscando matá-lo, apenas tirá-lo de combate. Afinal, o monstro deseja seu sangue, e para isso, ele precisa estar vivo. Se não onde estaria a graça? Paul é forçado a recuar, mais e mais, cada golpe estremecendo seus braços e pernas, a adrenalina da morte a um fio o fazendo ignorar a dor da coxa ferida, mas não dos novos ferimentos, que se acumulam, um a um, retalhando braços e pernas, que sem a proteção adequada estariam em frangalhos. O monstro sorri sadicamente enquanto sua espada dourada reduz as forças do mascarado a cinzas. E então para. Paul cai de joelhos, enquanto assiste ao monstro saborear seu sangue na lâmina. Sangue que tinge não só a arma do adversário, mas sua própria armadura, e o chão da igreja. A luta prosseguiu se afastando do cômodo inicial, ignorando o som do impacto do caminhão contra as portas e chegando até próximo ao altar. Agora, ajoelhado diante do monstro e dos corpos que substituem os santos, Paul pode sentir sua vida se esvaindo. Pode enxergar os olhos acusadores daqueles que foram mortos por ele. Olhos famintos por sua alma, famintos como o vampiro que está diante de si.

Kelen... será que o final da história é assim? Sem te ver uma última vez?, ele pensa.

— O sangue fala. Não preciso que me diga nada sobre si, homem da máscara e capa. Não é necessário, pois teu sangue fala com mais verdade e profundidade que qualquer palavra que tua boca profira. — Ele caminha lentamente, parando ao lado de seu inimigo de joelhos. — Sinto seu medo por trás dessa máscara. Sinto seu medo de fracassar, sinto sua mente confusa, sua saudade de alguém que se foi para...

As palavras do vampiro o trazem de volta. Não o homem com medo da morte, trazem o Golem: a máscara, o símbolo, o mito do monstro de barro e pedra, da coisa que existe apenas para cumprir a vontade de seu senhor. Coisas criadas não tem medo, e ele também não.

De repente um estalo, seguido de fumaça prateada dominando o recinto. O vampiro se afasta, mas não antes de sentir os efeitos do invento, da pequena bomba de prata desenvolvida pelo Golem. Os olhos do monstro ardem, sendo então tomado por uma tosse incontrolável que o faz baixar a guarda. Em um movimento rápido e preciso o Golem executa um golpe com a lâmina, forçando o padre a defender-se. Um truque, pois é com as pernas que ele derruba o adversário, deixando-o numa posição finalmente desfavorável. Seu treinamento israelita em Krav maga lhe permite quebrar ossos sem dificuldade, e mesmo que seu inimigo se trate de um vampiro, enquanto o membro não regenerar, a vantagem é dele. Com o braço da espada quebrado, e a face de pedra diante de si, sacando sua arma com balas de prata, o antigo vampiro começa a temer o desfecho da luta.

— Você é um fantasma... uma casa vazia! — Ele diz, em meio a um sorriso insano, focando olhos invisíveis sob a máscara, enquanto luta para se erguer. — Eu tenho uma missão nesse mundo, a volta dele não será interrompida por uma casa vazia.

Paul consegue enfim encravar a lâmina no outro braço do monstro, mas executá-lo não parece fácil. Ele luta contra uma força sinistra que tenta dominar sua mente, uma voz, um desejo, um impulso de largar as armas e se entregar a morte.

— Você não é nada, nunca será nada. — Olhos arregalados e profundos, injetados de sangue, presas salientes num sorriso sádico e desesperado. — A morte é sua libertação, sua única chance! Entregue-se a sua amante, entregue-se a morte!

— ...sou um fantasma... uma casa vazia... — Paul para de tremer, para de lutar. Então ergue a face encarando seu inimigo. Sua presa. — Eu sou o golem.

E dispara. Uma, duas, três vezes. O vampiro é deixado com um buraco enorme no crânio, enquanto o Golem se afasta. Os morcegos cessam seu vôo... caindo sem vida. Ele olha em volta, apenas a escuridão e silêncio diante de si. E uma menina, uma menina assustada e de olhos arregalados.


[...]


O lobo branco abre caminho silenciosamente pelas barracas. Não que ele espere surpreender seus alvos, afinal eles são lobisomens, todos tem faro aguçado o suficiente para detectar uns aos outros. É apenas uma forma de prolongar a sensação. Os cheiros não mentem: Rickon, o adolescente da idade dele, e Peg, a mulher do Malcon. Apenas eles, diante do grande lobo branco, diante da fúria de Andy Valentine. Quando atravessa a última barraca ele sente, antes mesmo de ouvir, sente a mudança no ar: a atitude desesperada do lobo menor. O garoto-lobo de pelo castanho e corpo franzino se joga na direção do invasor, de presas abertas, buscando segurá-lo. Andy o derruba com um golpe. Rápido e pesado, só força bruta, sem usar as garras.

— Vo-você quer a Mandy, não é? Você veio por ela? — O garoto pergunta desesperado, cara no chão e alguns dentes quebrados. — Ela está na igreja, Andy, está nas mãos do Padre, o chefe dos vampiros. Se você correr, pode salvá-la ainda.

Andy o olha com desprezo, enquanto coloca a mão sobre a cabeça do jovem lobo. Jovem como ele, mas bem menos forte. Percebendo que o lobo branco não diz nada, o garoto continua:

— Foi você que matou o Boris? Digo... o Jeff eu sei...disseram que a Evy foi parar no hospital com vocês. Cara, eu juro, eu não encostei em nenhum deles, eu só ajudo, eu não gosto de matar ninguém, então...

— Ei, buchudinha. Pode ficando parada ae. — Andy ordena, ignorando o lobo assustado e entrando na última barraca. — Acha mesmo que eu não percebi você se arrastando atrás do teu macho?

Peg está em forma de licantropo, pelugem negra como a do Malcon e corpo esguio com garras longas. Garras que protegem a barriga de gestação avançada.

— O lobinho cresceu. — Ela diz, desprezo na voz. — Parabéns pra você, rapaz. Conseguiu deixar meu homem muito, muito puto. Os caras que você matou, eram nossos amigos. E a puta, pra mim você fez um favor, mas o Mal comia ela, então acho melhor você colocar o rabinho entre as pernas e fugir enquanto dá tempo.

Ela diz isso com ar confiante, sabendo que Andy também ouviu o uivo do líder, que pode ouvir sua aproximação a distância.

— ...correr? — Ele ironiza, ignorando os avisos.

— Andy, por favor, se você quer mesmo salvar sua namorada, vai enquanto tem chance. — Rickon se aproxima, submisso, se colocando entre Andy e Peg. — Se o líder te ver aqui, acabou pra você.

Andy olha para os olhos do lobo, cheios de medo e esperança... e para os da mulher mais velha, confiante pela chegada do seu amor, do seu líder, seu homem, seu “macho-alfa”. E lembra do olhar da Mandy, das suas últimas palavras para ele “se esconde”

— Eu não fujo, nem me escondo. — Andy diz, já ouvindo os passos acelerados do lobo negro, já sentindo sua fúria. — E não deixo trabalho pela metade.

Uma mordida. Uma mordida é tudo que foi preciso para matar a loba. Não só isso, os dentes do lobo branco entraram fundo no corpo de uma Peg aterrorizada, contemplando os restos de uma vida em formação que saem das presas de seu assassino. Ela cai de joelhos, morta. Rickon grita de horror, enquanto contempla o garoto-lobo cuspindo as partes do que seria o futuro do bando. O orgulho do Malcon... aquilo que o garoto jurou proteger. Andy faz questão de um último olhar na direção do seu opositor, antes de virar as costas em busca da Mandy. Malcon enfim chega, ainda com tempo de atacar o inimigo inesperado... mas ele para. Perde a reação, perde o fôlego. Diante da cena, tudo o que o enorme licantropo negro consegue fazer é cair diante dos restos da sua família. Sua matilha... seu mundo.

O corpo da mulher assume sua forma original, o que ressalta ainda mais o aspecto grotesco do quadro. Malcon leva as mão peludas a cabeça, as garras tirando sangue da própria face, como se estivesse buscando penitência. Ele grita, urra! Rickon olha para seu líder com compaixão, como nunca sentiu antes. Sequer tem coragem de encará-lo, sequer consegue parar de tremer e chorar. Já como ser humano, igualmente impotente.

— ... Valentine... Valentine... — Malcon sussurra, o ódio como única âncora impedindo de afundar na loucura. Sua voz se tornando cada vez mais alta, cada vez mais aterrorizante, até se tornar um grito. Um grito de libertação e morte. — Valentine!!!

[...]


Subterrâneo da Igreja.

No salão iluminado por lamparinas, dois vampiros antigos se observam. A única outra pessoa no recinto, e a única viva, é a jovem ruiva que não quer se afastar do vampiro Adam. Partes de corpos e um banho de sangue decoram chão, paredes e colunas, enquanto o vampiro alto, negro e bem vestido faz uma mesura para seu rival, dizendo:

— Me chamo René Chermont, e é uma honra desafiar o filho do grande mestre.

— Traga-me a Claire, francês, e eu o deixarei viver. — Adam diz.

René assume uma postura de combate, seu sabre apontado para Adam.

Pardon, monsieur Tepes, mas não creio que tenha qualquer autoridade aqui. — Ele dá os primeiros passos em direção ao rival — Obrigue-me.

Em um piscar de olhos Adam bloqueia uma lâmina que passa raspando por seu rosto, deixando um corte superficial que, não fosse sua velocidade de resposta, teria arrancado a parte de cima do seu crânio. Antes que tenha tempo de recuperar-se da surpresa, se vê obrigado a bloquear uma sequência de golpes, rápidos e precisos, cada um deles capaz de arrancar partes de seu corpo. Uma chuva de golpes que pressiona o vampiro, arrancando sangue, o fazendo recuar, até se ver contra a parede. René é mais alto, seus braços compridos aumentando o alcance dos seus golpes e dificultando um contra-ataque. Adam tenta achar uma brecha no estilo do adversário, mas sem sucesso.

— Você é rápido...e habilidoso. — Adam diz, enquanto bloqueia com dificuldade cada novo ataque, encarando um vampiro de olhar penetrante e expressão ininteligível. — Quantos séculos tem, senhor Chermont?

René detém a própria espada diante do oponente, ambos parando por um momento. Após algum tempo observando os ferimentos do adversário, abaixa a espada... com uma expressão de desagrado.

— ... o suficiente para saber quando meu adversário não leva o duelo a sério. Continue me insultando com essa postura, e prometo que a humana sentirá as consequências. — As duas figuras de manto então abaixam seus capuzes, revelando as faces de Claire Winnicott e uma mulher desconhecida. Uma vampira.

Adam percebe que sua amada ostenta um olhar perdido, como se não estivesse consciente do que acontece ali. A vampira por outro lado, o encara friamente, enquanto caminha até a jovem catatônica, segurando seu pulso... como se desejasse sugar dele.

— Que seja! Vou lhe mostrar o verdadeiro poder do sangue que carrego.

Adam se ergue acima dos inimigos. Seus cabelos flutuando, seus olhos assumindo um tom mais vermelho e suas presas a mostra. Sua energia maior e mais intensa que há um momento atrás! Elisabeth, a jovem espectadora, assiste a tudo com olhos cintilando de excitação.

— Meu anjo negro...

René sente a presença de seu adversário, poderosa, intimidadora. Todo seu corpo reagindo ao olhar do predador que o encara de cima. Uma sensação que há muito não sentia, um prazer em temer pelo próprio fim, o risco... a morte. E sorri em resposta.

— Venha, Tepes, mostre-me o que pode fazer! Faça-me provar do poder que herdou do velho dra... — Um movimento rápido corta a frase, o ar e a pele. O único som é o de carne sendo cortada, com sangue voando em profusão! René tentou, mas tudo que pôde fazer foi proteger o pescoço com seu outro braço... que foi decepado. Em uma velocidade assustadora, Adam Tepes passou por seu adversário, quase o decapitando no processo.

Adam para à poucos metros da vampira, a meio metro do chão. Ela instintivamente puxa uma Claire sem reação para junto de si, presas sobre o pescoço e uma pistola encostada as costas dela, na altura do coração. Com o antebraço esquerdo no chão, e sangue escorrendo abundantemente do que sobrou dele, o vampiro encara Adam Tepes, que desce suavemente, embainhando a espada. A garota ruiva leva as mãos a boca, maravilhada.

— Ainda pode viver, René. Você e sua amiga, ainda podem viver. Me deixem levá-la, esqueçam tudo isso, todo esse plano insano, essa fé doente... e serei piedoso. — Adam se põe de lado, de modo que pode olhar para cada um deles, enquanto faz sua oferta.

René se ergue, apoiando-se na espada. Seu olhar exibe determinação, mais do que o vampiro imaginava encontrar. Pelo contrário... ele parece ainda mais motivado.

— Por qual motivo embainhou a espada, monsieur Tepes? — Ele sorri, a vampira sorri. — O duelo está longe de seu fim.

Adam observa o que restou do braço do vampiro pulsar, vasos de sangue se formando em incrível velocidade, carne brotando daquele membro cortado...crescendo até assumir a forma de um novo braço, totalmente funcional.

— Um regenerador, então. — Adam comenta, sacando a espada novamente. — Vamos descobrir em quantos pedaços tenho que cortá-lo até que morra.


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